A torre azul do Mosteiro de Dürnstein. No alto, as ruínas do Castelo Kuenringer, que hospedou Ricardo Coração de Leão no ano 1192.

A chegada em Dürnstein é idílica. Vinhedos plantados nas escarpas ladeiam o rio, telhados antigos surgem nas curvas, junto com ruínas de castelos medievais, abadias centenárias, igrejas com campanários imponentes e vilas que parecem presépios. Assim é o Vale de Wachau, um desfiladeiro de 34 quilômetros de extensão do Rio Danúbio, entre Melk e Krems, no nordeste da Áustria. Marcos históricos da arquitetura e da cultura da Europa Central, católica e barroca, estão aqui preservados e tombados como sítios do Patrimônio da Humanidade, da Unesco. Os austríacos não brincam com a herança cultural e o patrimônio da natureza: os regulamentos proíbem até a construção de pontes.

A mais antiga referência ao Vale do Wachau tem nada menos do que 25 mil anos e as formas avantajadas da Vênus de Willendorf, uma estatueta pré-histórica feminina encontrada na aldeia de mesmo nome. De fato, muita coisa passou pelas águas turvas do rio. Durante séculos o vale teve grande importância estratégica, quando o Danúbio era a via para o transporte de riquezas. Daí os castelos e igrejas que controlavam o tráfego fluvial no alto dos morros, favorecidos pela situação geográfica. Cada fortificação cobrava pedágio pela passagem dos barcos.

Atualmente, a aparência do Wachau remete aos séculos 11 e 12, seja na estrutura das cidades, seja no traçado das ruas, com influência marcante do período Barroco posterior, entre os séculos 16 e 17. A Áustria foi um império católico governado pela família real dos Habsburgos de 1273 até 1806. Redescoberta pelo turismo que valoriza a natureza, a história e a cultura, a região é atravessada por cruzeiros que percorrem o Danúbio, o melhor meio para se conhecer o vale. Um dia de jornada basta para fazer o trajeto, com paradas em Dürnstein e Melk.

Acima, os afrescos do teto da Abadia de Melk, pintados por Paul Troger. No alto, a fachada barroca do edifício. No canto esquerdo, a escada vertiginosa. No detalhe, o relógio da torre. No canto direito, o AmaDolce desliza pelo Danúbio.

US$ 2 mil por pessoa

O Wachau é percorrido em um dia de viagem, mas a viagem pode ser estendida para sete noites, saindo de Budapeste, na Hungria, e terminando em Vilshofen, na Alemanha, com paradas em Bratislava (Eslováquia), Viena, Dürnstein, Melk e Linz (Áustria) e Passau (Alemanha). O AmaDolce, da frota AmaWaterways, é um barco de luxo, com 100 metros de comprimento, que funciona como hotel-butique. Acomoda 148 passageiros em 75 suítes ou cabines. As paisagens podem ser apreciadas do sun deck, onde há uma jacuzzi e cadeiras espreguiçadeiras. As viagens com sete noites de duração, rio acima e rio abaixo, acontecem de março a dezembro. O preço varia conforme a temporada e o tipo de cabine, a partir de US$ 1.999 por pessoa. Mais informações: Firstar info@firstar.tur.br – tel.: (11) 3253-7203 ou (21) 3553-7646.

 

Vale preservado

Os 34 km entre Krems e Melk, na Áustria, concentram paisagens singulares da história da Europa Central, desde o Neolítico até a ocupação nazista durante a Segunda Guerra Mundial.

Vinho e damasco

Em Dürnstein vivem 880 habitantes, todos envolvidos, de uma forma ou de outra, com a produção de damascos, uvas e vinhos. Com apenas uma rua principal, algumas pracinhas e poucas vielas, a cidade escaparia ao turista que trafega de carro pela Áustria, mas é, com certeza, uma das mais gratas surpresas da viagem de barco. Os próprios moradores, em geral produtores de uvas que herdaram o ofício das famílias, viram guias quando o navio chega, acompanhando os turistas.

Entre as edificações barrocas se destaca a torre azul do mosteiro, à beira do rio, encimada pelas ruínas do Castelo Kuenringer, certamente o local mais seguro, nos idos do ano 1000, para vigiar o tráfego fluvial e manter a segurança dos nobres Babenberg, que dominavam a região. Foi nas ruínas desse castelo que o rei Ricardo Coração de Leão ficou prisioneiro quatorze meses, entre 1192 e 1994, ao voltar de Jerusalém depois da terceira Cruzada. Diz a história que o inglês foi salvo do cativeiro ao responder ao menestrel francês Blondel, quando cantou a canção que ambos haviam composto. Lenda ou não, a história é repetida e os nomes dos dois batizam os cafés da cidade.

Uma das atrações é a degustação de vinhos numa taverna. Mas há gente que prefere enveredar pelas lojinhas e descobrir que o damasco é matériaprima para tudo: sabonetes, xampus, cremes, doces, geleias, sucos, azeites e as famosas aguardentes “Marillenschnaps”.

De volta ao barco, a viagem revela a cada curva uma surpresa, seja a aldeia de Spitz, a Igreja Weissenkirchen, o Castelo Schönbühel, sejam as ruínas do Castelo Aggstein, sem falar dos vinhedos plantados em terraços. Outro meio de conhecer o Wachau é pedalando. Para tanto, há bicicletas no navio e um guia que conduz os interessados por estradas pitorescas.

Quando se chega a Melk, não importa de onde se olhe, a abadia se impõe. O edifício é tão grandioso que é difícil entender por que o centro religioso está situado no vilarejo. A abadia existe desde 1089, quando Leopoldo II da Áustria doou um de seus edifícios aos monges beneditinos. No século 12 ali foram instaladas uma escola e uma biblioteca que, ao longo do tempo, tornou-se famosa por sua coleção de manuscritos teológicos. A abadia tornou-se um centro de abades copistas que preservaram manuscritos da Antiguidade.

Tesouro barroco

Foi exatamente essa abadia e sua biblioteca que inspiraram o escritor italiano Umberto Eco a escrever o clássico O Nome da Rosa. Um dos personagens da trama sobre a ação da Inquisição chama-se Adso de Melk. Hoje, a biblioteca de Melk reúne incontáveis manuscritos medievais e partituras e exibe no teto afrescos de Paul Troger, um dos mais afamados artistas do Barroco austríaco.

Seus edifícios sofreram várias reformas, sendo a última financiada pela venda de um exemplar da coleção, um original de 1455 da Bíblia de Guttenberg – o primeiro best-seller mundial -, adquirido pela Universidade Harvard, nos Estados Unidos. A fachada reformada é do século 18, as escadarias luxuosas chegam a dar vertigem e os salões abrigam exposições. Há também uma pequena igreja barroca, de cujo átrio se veem a aldeia e as curvas do Danúbio.

O damasco é a base dos produtos do vale que também produz os melhores vinhos brancos da Áustria.

Nessa região conturbada, campo de batalha de tantas guerras, foi a importância acadêmica que salvou a abadia da dissolução. O imperador José II confiscou vários conventos sem funções sociais. Por sorte, Melk escapou da destruição nas Guerras Napoleônicas e sobreviveu ao nazismo, quando parte da escola foi confiscada pelas autoridades do Anschluss, a anexação da Áustria por Hitler, em 1938.

O Wachau produz alguns dos melhores vinhos brancos da Áustria, secos e doces, com uvas Rieslings, além dos celebrados Grüner Veltiners. No vale todo há 1.390 hectares de vinhedos que produzem cepas varietais como Neuberger e Gelber Muskateller, controlados pela Vinea Wachau Nobilis Districtus, a associação que classifica os vinhos do Wachau como Steinfeder, Federspiel e Smaragd.

Algumas bebidas são servidas a bordo do cruzeiro, durante o jantar, como parte de uma experiência cultural que vem se tornando rota de “connaisseurs”. Outra vivência importante é a apresentação de conjuntos de música de câmara a bordo, como um trio de violinos e violão, que oferece composições de artistas austríacos como Schubert, Strauss, Haydn, Mahler e o celebrado Mozart, que circulou amplamente pelos palácios da região.

Acima, o Castelo Schönbühel. Abaixo, a biblioteca do século 12, da Abadia de Melk, que inspirou o livro O Nome da Rosa, de Umberto Eco.

Vale de guerras

Embora a presença do homem no Vale do Wachau recue até o Neolítico, quando começou o cultivo de terras ao longo do Danúbio, nenhuma mudança considerável aconteceu até o ano 800, quando os mosteiros da região começaram a plantar uvas em terraços, método utilizado até hoje.

Como outras partes da Europa Central, o vale sofreu inúmeras e repetidas invasões, entre as quais se destacam a dos povos celtas e mais tarde os romanos, que fizeram do Danúbio a fronteira Norte do seu império. No ano 976, Wachau ganhou seu primeiro rei, Leopoldo ll, dos Babenbergs.

Graças à ausência de uma autoridade estatal adequada, durante a Idade Média, as cidades do Wachau foram bastante independentes. O vale foi rota de cruzados e, após os Habsburgos terem consolidado seu poder na região, foi invadido pelos húngaros, comandados por Mathias Corvinus, no século 15.

As reformas protestantes também provocaram impacto entre 1530 e 1620, mas os levantes religiosos foram subjugados pela reação comandada pelo abade Georg II Falb (1612-31). A vitória católica levou à construção de igrejas, capelas e monumentos presentes na região.

Como parte do Império Austro-Húngaro, o Wachau sofreu com várias guerras, como a Guerra dos 30 Anos, da Suécia e da França contra os Habsburgos (1618-1648), as Guerras Napoleônicas (1799-1815), e as duas Guerras Mundiais (1914-1918 e 1939-1945). Atualmente, parece ter reencontrado sua vocação pacífica com o turismo cultural sustentável.