O que aconteceria se considerássemos a grande quantidade de água residual doméstica, agrícola e industrial despejada no meio ambiente todos os dias como um recurso valioso em vez de um dispendioso problema? Essa é a mudança de paradigma defendida pelo Relatório Mundial das Nações Unidas sobre o Desenvolvimento dos Recursos Hídricos, “Águas residuais: o recurso inexplorado”, lançado em março em Durban (África do Sul) por ocasião do Dia Mundial da Água. Esse documento é um relatório do UN Water (ONU-Água, em tradução livre) coordenado pelo Programa Mundial das Nações Unidas para Avaliação dos Recursos Hídricos, liderado pela Unesco. Segundo o documento, uma vez tratadas, as águas residuais poderiam se tornar fontes importantes para satisfazer a crescente demanda por água doce e outras matérias-primas.

Uma grande proporção de água residual ainda é liberada no meio ambiente sem ser coletada ou tratada. Isso é ainda mais presente em países de baixa renda, que, em média, tratam apenas 8% das águas residuais domésticas e industriais, ante 70% nos países de renda alta. Como resultado, em muitas regiões do mundo, águas contaminadas por bactérias, nitratos, fosfatos e solventes são despejadas em rios e lagos que desaguam nos oceanos, trazendo consequências negativas para o meio ambiente e a saúde pública.

O volume de água residual a ser tratado aumentará consideravelmente em um futuro próximo, sobretudo em cidades de países em desenvolvimento com populações que crescem rapidamente. “A geração de águas residuais é um dos maiores desafios associados ao crescimento de assentamentos informais (favelas) no mundo em desenvolvimento”, afirmam os autores do relatório. Uma cidade como Lagos (Nigéria) gera 1,5 milhão de metros cúbicos de águas residuais por dia, a maior parte dos quais é despejada sem tratamento na Laguna de Lagos. Se providências não forem tomadas, essa situação deverá se deteriorar ainda mais, já que a população da cidade poderá superar 23 milhões de pessoas até 2020.

Risco à vida

A poluição causada por agentes patogênicos de excrementos humanos e de animais afeta quase um terço dos rios da América Latina, Ásia e África, pondo em risco as vidas de milhões de pessoas. Em 2012, 842 mil mortes em países de renda baixa e média estiveram ligadas a água contaminada e serviços sanitários inadequados. A falta de tratamento também contribui para a propagação de doenças tropicais como dengue e cólera.

Descartada sem tratamento nas favelas, a água vira um risco para a saúde (Foto: iStockphotos)

Solventes e hidrocarbonetos produzidos por atividades industriais e de mineração, bem como a descarga de nutrientes (nitrogênio, fósforo e potássio) da agricultura intensiva aceleram a eutrofização (processo pelo qual um corpo de água adquire níveis altos de nutrientes, provocando o acúmulo posterior de matéria orgânica em decomposição) da água potável e dos ecossistemas costeiros e marinhos. Estima-se que 245 mil km2 de ecossistemas marinhos – área quase igual à do estado de São Paulo – são afetados por esse fenômeno hoje. O despejo de águas residuais não tratadas também estimula a proliferação de algas tóxicas e contribui para o declínio da biodiversidade.

A crescente consciência sobre a presença de poluentes como hormônios, antibióticos e esteroides em águas residuais apresenta um novo conjunto de desafios, uma vez que seus impactos no meio ambiente e na saúde ainda precisam ser totalmente compreendidos. A poluição reduz ainda mais a disponibilidade de abastecimento de água potável, que já está sob estresse, principalmente por causa das mudanças climáticas. A maioria dos governos e dos tomadores de decisão, porém, tem se preocupado mais com os desafios da oferta de água (sobretudo quando ela escasseia), enquanto ignora a necessidade de tratar a água depois de seu uso. Coleta, tratamento e uso seguro das águas residuais constituem o alicerce de uma economia circular, equilibrando o desenvolvimento econômico com o emprego sustentável dos recursos. A água reciclada é um recurso amplamente subexplorado, que pode ser reutilizado diversas vezes.

Irrigação

As águas residuais são mais comumente usadas para a irrigação agrícola, e pelo menos 50 países as utilizam com esse propósito, representando cerca de 10% das terras irrigadas do mundo. Contudo, os dados ainda são incompletos em muitas regiões, sobretudo na África. No entanto, essa prática levanta preocupações de saúde quando a água contém organismos que podem contaminar as culturas. Dessa forma, o desafio é passar de uma irrigação informal para um uso planejado e seguro, como a Jordânia tem feito desde 1977. Das águas residuais tratadas do país, 90% são utilizadas na irrigação.

Cultivo na Jordânia: 90% da água usada para a irrigação no país é tratada (Foto: iStockphotos)

Na indústria, grandes quantidades de água podem ser reutilizadas para aquecimento e resfriamento, por exemplo, em vez de ser descartadas no meio ambiente. Até 2020, estima-se que o mercado para o tratamento de águas residuais nas indústrias aumentará 50%. Águas residuais tratadas também podem servir para ampliar o abastecimento de água potável, embora essa ainda seja uma prática marginal. Windhoek, a capital da Namíbia, faz isso desde 1969. A fim de combater a recorrente escassez de água doce, a cidade criou uma infraestrutura para tratar até 35% das águas resi­duais, usadas depois para complementar as reservas de água potável. Os habitantes de Cingapura e San Diego (EUA) também bebem, com segurança, água reciclada.

A população pode se sentir desconfortável com a ideia de beber ou utilizar água que uma vez foi considerada suja. A falta de apoio público levou ao fracasso de um projeto de reúso de água para irrigação e piscicultura no Egito nos anos 1990. Campanhas de conscientização podem ajudar a conquistar aceitação pública para esse tipo de prática, remetendo a exemplos bem-sucedidos, como o dos astronautas da Estação Espacial Internacional, que têm reutilizado a mesma água reciclada há mais de 16 anos.

Recuperação

Além de representarem uma fonte alternativa segura para a água doce, as águas residuais podem ser vistas como uma fonte potencial de matérias-primas. Graças aos avanços em técnicas de tratamento, certos nutrientes, como fósforo e nitratos, podem agora ser recuperados a partir de esgotos e lodos e transformados em fertilizantes. Estima-se que 22% da demanda global por fósforo, um recurso mineral finito e em esgotamento, poderia ser atendida pelo tratamento da urina e de excrementos humanos. Países como a Suíça já aprovaram uma legislação que exige a recuperação de determinados nutrientes como o fósforo.

As tecnologias para tratar água residual conseguem recuperar matérias-primas (Foto: iStockphotos)

As substâncias orgânicas contidas nas águas residuais poderiam ser usadas para a produção de biogás, o que ajudaria a aumentar as instalações de tratamento de águas residuais, permitindo que elas deixem de consumir muita energia e adquiram neutralidade energética ou até mesmo passem a produzir energia. No Japão, o governo propôs-se a recuperar 30% da energia de biomassa existente em águas residuais até 2020. Todo ano, a cidade de Osaka produz 6,5 mil toneladas de combustíveis biossólidos a partir de 43 mil toneladas de lodo de esgoto.

Essas tecnologias não precisam ficar fora do alcance de países em desenvolvimento, uma vez que as soluções de tratamento de baixo custo já permitem a extração de energia e de nutrientes. Elas ainda não permitem a recuperação direta de água potável, mas podem produzir água viável e segura para outros usos, como a irrigação. E as vendas de matérias-primas derivadas das águas residuais podem fornecer rendas adicionais para ajudar a cobrir os custos de investimento e operacionais do tratamento dessa água.

Atualmente, 2,4 bilhões de pessoas ainda não têm acesso a boas instalações sanitárias. Reduzir esse número, segundo o Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 6 da Agenda 2030 da ONU, sobre água e saneamento, significará despejar ainda mais águas residuais, que terão de ser tratadas de forma acessível. Já foi alcançado certo progresso. Na América Latina, por exemplo, o tratamento de águas residuais quase dobrou desde o fim dos anos 1990 e cobre entre 20% e 30% da água residual coletada em redes de esgoto urbanas, mas ainda existe um longo caminho a ser percorrido. Um passo essencial nesse sentido é o reconhecimento generalizado acerca do valor do uso seguro de águas residuais tratadas e de seus valiosos subprodutos enquanto alternativas à água doce bruta.