Uma ilha no Oceano Pacífico guarda a história de Alexander Selkirk, navegador que inspirou um dos grandes personagens da literatura universal, Robinson Crusoé. Vítima de uma época perigosa, de piratas e corsários, Selkirk permaneceu ali, totalmente isolado por quatro anos, e teve como morada um paraíso que hoje é o refúgio de milhares de espécies de animais, plantas, e de uma paisagem digna de figurar nas melhores páginas de nossa literatura.

…À primeira vista

Vista da Baía de Cumberland e do vilarejo de San Juan Bautista, um exótico cartão-postal que encanta à primeira vista.

Não eram grandes navios, como aqueles descritos nas histórias de piratas e de corsários, mas um amontoado de pequenos barcos de pescadores balançando lentamente com as ondas. Mesmo assim, enquanto atracamos no píer do tranqüilo vilarejo, é a atmosfera de um dos grandes clássicos da literatura universal que me vem à cabeça.

Localizada a 673 quilômetros da costa chilena, a Ilha Robinson Crusoé, onde acabo de desembarcar, é desses lugares que unem realidade e ficção. Exatamente aqui, em 1704, após discutir com seu capitão, o marinheiro escocês Alexander Selkirk foi impedido de embarcar e abandonado, sendo obrigado a permanecer sozinho na ilha deserta por quatro anos.

Em 1709, foi resgatado e voltou à civilização. A partir disso, sua saga passou a ser muito conhecida: chegou aos ouvidos de Daniel Defoe, já na época um famoso escritor, inspirando- o a lançar, em 1719, as incríveis histórias de Robinson Crusoé, um marinheiro imaginário que, após um naufrágio, viveu 28 anos numa ilha selvagem.

Quase três séculos depois, as histórias do grande aventureiro da ficção continuam povoando o imaginário de viajantes do mundo inteiro, e atraindo milhares de turistas a essa ilha paradisíaca, hoje considerada Reserva Mundial da Biosfera pela Unesco, título que recebeu em 1977. Com pouco mais de cem quilômetros quadrados de área, pertence ao arquipélago Juan Fernandez, formado por três ilhas descobertas em 1574 por esse navegante, que o batizou com seu próprio nome. A maior delas foi chamada nessa época de Más a Tierra, como referência ao fato de estar mais perto do continente.

…Tom único

Acima, cores fortes e flores dão o tom do único vilarejo da ilha; à esquerda, pescador exibe algumas centóias, tipo de caranguejo que habita aquelas águas. À direita, turistas desembarcando na Baía dos Ingleses; e o caranguejo dourado.

A outra se chamou Ilha de Santa Clara, e a terceira, mais distante e menor, foi chamada de Más a Fuera, como referência ao fato de estar mais distante do continente. Más a Tierra começou a ser povoada somente em 1877, com famílias trazidas da Europa e do Chile, que formaram o povoado de San Juan Bautista, hoje com aproximadamente 700 habitantes.

Mas foi somente em 1966, mais de dois séculos depois do lançamento do livro de Daniel Defoe, que Blanca Lus Brum, uma poetisa que vivia na ilha, sugeriu ao governo chileno a mudança do nome do lugar, visando atrair maior número de turistas e tornar mais conhecida suas histórias – passaria a se chamar Ilha Robinson Crusoé. Santa Clara permaneceu com o mesmo nome e a ilhota ao lado teve seu nome mudado para Ilha de Selkirk, embora ele nunca ali tivesse pisado.

Nas trilhas de Selkirk

Mal desembarco e sigo em busca dos passos de Selkirk. Em meio às casas coloridas do vilarejo, sigo por uma trilha que leva justamente ao Mirante Selkirk, a 565 metros de altitude, de onde se tem uma excelente visão da baía e de todo povoado. Embora não seja uma trilha difícil, exige certo preparo, e faz lembrar o quanto a vida do marinheiro não era fácil. É dali que Selkirk contemplava a natureza exuberante da ilha e esperava por um navio que viesse tirar-lhe da solidão.

“Todo santo dia procurei um local apropriado para construir um refúgio, a fim de me pôr a salvo dos ataques de selvagens e de feras.”

Frase de Robinson Crusoé

A mesma paisagem que trouxe alento e esperança ao marinheiro hoje atrai, todos os anos, mais de 1.500 visitantes, na maioria alemães, franceses e chilenos, que chegam em busca de aventura, belas paisagens e das muitas histórias que a ilha nos reserva.

Ziguezagueando pelas ruas de San Juan Bautista, desfilamos por uma série de monumentos e momentos históricos: na colina está o Forte Santa Bárbara, usado para defender a soberania espanhola no século 18. Não muito longe dali, estão as Covas dos Patriotas, grandes cavernas que abrigaram os que lutaram pela independência do Chile, por volta de 1810. A ilha também mantém em suas encostas projéteis de canhões da Primeira Guerra Mundial, em batalhas travadas entre alemães e ingleses.

Mas hoje a tranqüilidade do vilarejo em nada lembra as ruidosas passagens históricas que suas montanhas testemunharam. Os canhões ainda apontam para o mar, mas em silêncio. O lugar encanta por suas casas coloridas, de madeira, muitas flores e, conseqüentemente, grande quantidade de beija-flores.

…Belezas naturais

Acima, riacho situado do lado norte da ilha, próximo ao Porto dos Ingleses; e campo de papoulas do lado oeste.

As mulheres esperam seus maridos no porto, no constante vaivém de barcos. Assim como Crusoé e Selkirk, é do mar que os seus habitantes tiram seu sustento e suas histórias. Pegando um barco, em poucos minutos estamos na Baía dos Ingleses, um lugar de beleza que mais parece ser possível somente na literatura. Um riacho desce límpido pelas montanhas tendo como leito pedras e um grande jardim de margaridas.

Ao fundo, as montanhas pontiagudas mostram que aquele pedaço de terra é uma ilha vulcânica, sinal de que a natureza também esteve revolta por ali. Dá para perceber bem os terrenos áridos e grandes áreas verdes, que vão formando um cenário bastante apreciado por aventureiros dos dias atuais, pessoas que vêm para a ilha fazer trekking e passeios a cavalo, em dezenas de trilhas que cruzam uma área que é parque nacional desde 1935, e que, desde então, vem sendo refúgio de espécies da fauna e da flora em extinção, muitas endêmicas. É o caso dos lobos-marinhos (Arctocephalus philipi), da lagosta de Juan Fernandez (Jasus frontalis), do beija-flor vermelho, do caranguejo dourado e das 215 espécies de plantas que compõem a vegetação da ilha, das quais 130 só existem ali. Longe de piratas e corsários, hoje essas espécies são tidas como o grande tesouro da Ilha Robinson Crusoé.

A ilha também nos reserva grandes surpresas no fundo do mar. Marinheiro de primeira viagem, ou melhor, mergulhador de primeira viagem, arrisquei- me nas águas frias de suas baías. Paramos de barco próximo a uma das “loberias”, locais da ilha onde há uma grande concentração de lobosmarinhos e fui nadando lentamente rumo às rochas, onde eles estavam tomando sol. Em poucos minutos, tive a sensação de que estava sendo observado. Então, percebi que um daqueles animais enormes, que chegam a pesar mais de 200 quilos, estava, a pouco mais de dois metros de distância, me observando atentamente. Eu era o intruso naquele lugar onde a natureza agora impera.

Daniel Defoe

O escritor inglês Daniel Defoe teve uma vida conturbada, tendo sido preso em seu início de carreira por colaborar com jornais clandestinos de sua época. Viveu entre os séculos 17 e 18, de 1659 a 1731, e somente aos 60 anos deu uma guinada em sua carreira, partindo para a ficção. Além de Robinson Crusoé, que teve um sucesso estrondoso e centenas de versões em todo o mundo, escreveu também Moll Flanders, em1722, O Diário do Ano da Peste, no mesmo ano, e Roxana, em 1724, sendo considerado um dos iniciadores do romance realista moderno.

Ilha Robinson Crusoé

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Mas não foram só Crusoé e Selkirk que se tornaram símbolos de luta pela sobrevivência na ilha. Desde o século 18, a ilha que os recebeu é também personagem de uma trágica história de luta para manter as espécies que nela habitam. Depois de seu descobridor, Juan Fernandez, foi refúgio de piratas, corsários, aventureiros e de homens que levaram quase tudo que ela tinha para oferecer. Em 1801, os lobos-marinhos quase foram dizimados – um único navio levou mais de um milhão de peles para Londres, na Inglaterra

“Toda aquela região era tão fresca, tão florida, que mais parecia um jardim cultivado do que terreno selvagem.”

Frase de Robinson Crusoé

O sangue provavelmente se espalhou por toda baía de Cumberland, onde hoje os turistas se deliciam com águas límpidas e calmas. A ilha também era considerada um ponto estratégico para viagens além-mar, e os navios que por ali passaram deixaram cabras e coelhos, para que se reproduzissem e viessem a servir de alimento para uma próxima parada. Soltos na natureza e sem predadores, tornaramse uma praga e iniciaram um enorme desequilíbrio ambiental. A caça indiscriminada fez levar à extinção grande número de espécies e à quase extinção mais uma dezena delas.

Felizmente, as coisas estão mudando. Há cerca de 20 mil lobos-marinhos, que se tornaram espécies protegidas e já dão mostras de recuperação. As lagostas descritas por Selkirk e Crusoé, e que serviram de alimento, são, na verdade, uma espécie endêmica, que só vive e se reproduz naquela região. Quase desapareceram, mas hoje são uma das principais fontes de renda da ilha, exibidas ao mundo como uma iguaria que chega a altos preços por sua singularidade e sabor. Mas, para tanto, ainda se faz presente uma forte fiscalização para que os pescadores não as retirem do mar abaixo do tamanho exigido. Em determinadas épocas, não podem ser pescadas. Hoje, a interferência do homem está explícita nas placas que avisam: “Vegetação endêmica – não retire.” Assim, mais uma vez, o homem tenta se redimir.