Fundadora do movimento Me Too Brasil, Marina Ganzarolli defende um maior acolhimento às vítimas de estupro e diz que combate a esse tipo de crime não é prioridade do governo. Em um ano, plataforma recebeu 151 denúncias.A ativista americana Tarana Burke começou a usar a expressão Me Too (“eu também”) em 2006, para aumentar a conscientização de quão generalizada é a questão do assédio sexual na sociedade. Em 2017, o termo virou hashtag nas redes sociais – um movimento impulsionado pelas acusações de abuso sexual que o produtor de cinema Harvey Weinstein cometeu ao longo de 30 anos nos bastidores da indústria do entretenimento.

No ano passado, quando um grupo de 16 mulheres decidiu acusar, em conjunto, o curador de cinema, produtor e ator brasileiro Gustavo Beck também por abuso sexual, a jurista Marina Ganzarolli resolveu encampar a versão brasileira do movimento – que, a partir de setembro de 2020, ganharia as redes sociais.

Segundo o manifesto divulgado no próprio site da campanha, o objetivo “é amplificar a voz de sobreviventes, dar visibilidade aos milhares de relatos de abuso sexual silenciados e dar suporte para que estas meninas e mulheres saibam que não estão sozinhas”.

À DW Brasil, Ganzarolli conta que foram 151 denúncias recebidas no primeiro ano do projeto – 77 usaram a plataforma para desabafar, sem pedir andamento processual e, das 74 que procuraram ajuda prática, 68 resultaram em encaminhamento para a rede de proteção de segurança pública. Ela diz que o número é revelante, “considerando que a subnotificação é muito alta e romper o silêncio é difícil”.

Especialista em direito da mulher, a jurista é presidente da Comissão da Diversidade Sexual e de Gênero da seção paulista da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-SP) e há 15 anos atua no acompanhamento de casos de violência do tipo. “A resposta do Estado brasileiro é absolutamente ineficaz quanto à violência sexual contra mulheres, meninas e meninos também”, critica.

Ela acredita que um dos maiores dificultadores para enfrentar a situação seja a subnotificação. “O que leva essas vítimas a permanecerem tantos anos em silêncio? Obviamente que cada um sabe do seu tempo, como, quando e se quer falar sobre os traumas que sofreu. […] No contexto da pandemia e da necessidade de pensarmos numa forma de acolhimento virtual, jurídico, social e psicológico, motivamo-nos a fundar o Me Too Brasil.”

DW Brasil: O Me Too Brasil foi criado há um ano, quando a versão original, nos Estados Unidos, já estava consolidada. Qual o balanço das atividades nesse período?

Marina Ganzarolli: Recebemos 151 denúncias. É horrível [o número alto], mas, em termos de resultado [da mobilização], é excelente. Delegacias especializadas, da Mulher, não têm esse número de denúncias de estupro em um ano… Para a gente, é super-relevante, considerando que a subnotificação é muito alta e romper o silêncio é difícil. Um dado interessante é que muitas dessas mulheres [36 delas] estavam falando pela primeira vez sobre a violência que sofreram, graças ao Me Too Brasil. Nossa ideia era garantir canais de acolhimento, partindo do princípio da centralidade da vítima. Porque não adianta eu, como ativista, como especialista, como técnica, como advogada, virar e dizer: denuncie, ligue 180. Isso é uma escolha dela. [O discurso] não é “você deve”, “você tem de denunciar”. Mas sim, “se você quiser, estamos aqui para apoiá-la nesse processo”.

E o interessante é que temos dois canais de acolhimento. Um deles é uma escuta qualificada, com equipe multidisciplinar: assistente social, psicóloga, advogada. É por onde fazemos eventuais encaminhamentos para a rede de assistência ou de segurança pública mesmo. Mas metade delas [77 dos 151 relatos] usou o outro canal, o canal do desabafo, do “quero contar minha história, só”.

A grande maioria dessas denúncias são de violência sexual cometidas na infância. Mulheres adultas falando, anos e anos depois, da violência sexual sofrida. Nesse sentido, temos muito trabalho ainda pela frente, porque queremos apoiar e escutar cada vez mais mulheres, ajudando a romperem o silêncio. Ao mesmo tempo, é um desafio muito grande quando pensamos nessa rede… Poxa, “eu quero denunciar”, “eu quero o apoio”… O quanto a gente de fato consegue garantir que essa escuta e esse acolhimento serão adequados dentro do sistema de Justiça quando essa vítima decidir fazer o encaminhamento?

Nesse sentido, como você avalia a situação atual das políticas públicas para mitigar essa situação de atendimento às vítimas de violência sexual?

Milhões foram deixados de ser investidos na política de enfrentamento à violência contra as mulheres [conforme levantamento realizado pelo UOL, é o menor patamar desde 2015]. Claramente, no governo [do atual presidente Jair] Bolsonaro, isto não é uma prioridade na agenda de investimentos, não há o menor interesse em desenvolver [essas demandas]. O ministério da Damares [Alves, ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos] retirou o capítulo que falava sobre gênero na cartilha distribuída sobre a Lei Maria da Penha [que versa sobre violência doméstica], o disque 180 foi unido com o disque 100 [serviços de atendimento por telefone], que atende imigrantes, pessoas em situação de rua, e agora vai atender junto [casos de] pedofilia, de violência contra a mulher… Não faz o menor sentido. E as mulheres e as crianças são quem mais sentem isso.

Na sua avaliação, de que maneira tornar públicos casos de violência sexual ajuda a combater o problema?

A resposta do Estado brasileiro é absolutamente ineficaz quanto à violência sexual contra mulheres, meninas e meninos também. A gente avançou imensamente em relação aos marcos legais de enfrentamento à violência doméstica intrafamiliar com a Lei Maria da Penha, mas não conseguimos o mesmo avanço na conscientização da esfera pública e do sistema de garantias em relação à violência sexual. Pelo contrário, a pouca rede de enfrentamento vem sendo reduzida nos últimos anos. […] Acolho vítimas sobreviventes de violência sexual há 15 anos, hoje temos a compreensão de que em briga de marido e mulher se mete a colher sim. Mas, mesmo que muitas vezes haja campanhas de conscientização, hashtag nas redes sociais ressaltando que a culpa não é da vítima, essa ideia ainda não foi de fato absorvida de forma geral. A população tende a perguntar “o que ela estava fazendo lá?”, “por que bebeu?”, “por que estava com roupa curta?”, além de uma série de obstáculos culturais e sociais gigantescos que fazem com que a gente tenha resultados absurdos de subnotificação de violência sexual no Brasil. Conhecemos a situação: as vítimas geralmente são mulheres; os agressores, do sexo masculino e com uma relação social afetiva de alguma forma com a vítima; 70% das agressões são contra menores de 17 anos, sendo que 50% contra menores de 13. Sim, a realidade da violência sexual do Brasil nos leva ao debate sobre a pedofilia.

E o maior obstáculo para a gente é conseguir ter uma resposta eficaz para esse tipo de violência diante da subnotificação. O que leva essas vítimas a permanecerem tantos anos em silêncio? Obviamente que cada um sabe do seu tempo, como, quando e se quer falar sobre os traumas que sofreu, o estigma, a falta de compreensão sobre como a lógica da violência sexual funciona. […] No contexto da pandemia e da necessidade de pensarmos numa forma de acolhimento virtual, jurídico, social e psicológico, motivamo-nos a fundar o Me Too Brasil.

Depois da viralização inicial do movimento, a quantidade de denúncias diminuiu. Isso era esperado? Como fazer para que a repercussão continue?

Após o lançamento, quando a gente faz campanhas específicas há mais denúncias porque as pessoas conhecem o canal. Depois é esperada uma queda, mas a ideia é que sigamos levantando hashtags e realizando cada vez mais campanhas, atividades educativas, palestras e treinamentos, para garantir que cheguemos a essas mulheres, meninas e meninos e possamos manter o apoio e a escuta necessários para romper o silêncio. […] Nossos princípios, nosso acolhimento, são fundamentados em três valores: centralidade da vítima, no sentido de que estamos aqui para apoiá-la; compreensão e informação a respeito de traumas e de como eles afetam os relatos; e, obviamente, a imparcialidade e a neutralidade. Nosso objetivo não é só acolher as vítimas, mas conseguir de fato que haja uma resposta mais eficaz para a violência sexual no Brasil.