Há mais de 200 anos, o oásis urbano do Jardim Botânico do Rio de Janeiro maravilha todos que passeiam por suas aleias e olham para o alto, descobrindo o enquadramento perfeito entre o céu, as palmeiras imperiais centenárias e a estátua do Cristo Redentor. Por ano, são 600 mil visitantes, o que faz do parque o quarto lugar mais visitado do Rio, atrás apenas das praias, do Corcovado e do Pão de Açúcar.

Entre os que vão para fazer exercícios e os visitantes das 1,7 mil espécies do bromedálio, das 700 espécies do orquidário, da estufa de violetas ou do jardim sensorial, poucos sabem que o jardim é mais do que um parque ou um arboreto (uma coleção viva de espécies), mas uma instituição científica. O Instituto de Pesquisas Jardim Botânico do Rio de Janeiro, criado em 1998, abriga 9 mil espécies vegetais, dois terços da flora brasileira, algumas nem sequer descritas pela ciência, e a mais completa biblioteca botânica do país, com mais de 32 mil volumes. Só de palmeiras o parque dispõe de 2 mil tipos, uma das mais diversificadas coleções do mundo. O Jardim Botânico preserva o catálogo das espécies da flora brasileira e trabalha pela proteção das espécies ameaçadas.

À primeira vista, o papel da instituição pareceria impassível de questionamento, mas o oásis dos cariocas está envolvido em um sério confronto com 621 famílias moradoras da sua área e adjacências, sob ameaça iminente de realocação. Carente de ampliação do espaço físico para expandir experiências de reflorestamento, pesquisas sobre o bioma brasileiro e centros de estudo e trabalho social, o Jardim Botânico busca a demarcação definitiva dos seus limites, nunca completada, e a consequente retirada dos moradores irregulares da sua área. Esses, entretanto, não estão dispostos a sair e têm direitos de posse para reivindicar.

Iluminismo europeu

Foi o criador do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, o rei dom João VI, quem fundou o Jardim Botânico em 1808, para promover a aclimatação de espécies raras vindas do Oriente, no âmbito do projeto civilizador iluminista da época. Entre elas, a famosa Palma Mater, a mãe de todas as palmeiras imperiais que se reproduziram Brasil afora, até ser derrubada por um raio em 1972, cujos descendentes diretos são uma atração do parque.

Um século depois, influenciado pela nova visão positivista que se instaurava, o jardim deixou de ter um caráter agrícola e assumiu uma postura científica. O diretor do parque em 1900 era João Barbosa Rodrigues, um eminente botânico que organizou o local, colocando plantas em coleções e instaurando pesquisas que, a partir daí, deram à instituição outra importância. Em 1938, o jardim foi tombado pelo Instituto do Patrimônio Artístico e Histórico Nacional (IPHAN), que realizou uma demarcação de limites. Em 1998, o parque saiu do Ministério da Agricultura e passou à autoridade do Ministério do Meio Ambiente.

Hoje sob a direção do advogado ambientalista Liszt Vieira, o Jardim Botânico busca uma visão holística que integre ciência e cultura, arte e natureza. “Queremos tirar a ciência de seu isolamento e fazer com que os vários saberes dialoguem entre si”, afirma Vieira.

A nova diretoria definiu cinco focos de atuação para o parque: científico (preservação da coleção e promoção de pesquisas), educacional (cursos de mestrado e doutorado em botânica tropical), ambiental (preservação do parque em si), social (formação de jovens jardineiros provenientes de comunidades carentes) e cultural (promoção de espetáculos e debates no auditório do Espaço Tom Jobim, enriquecimento do Museu do Meio Ambiente e manutenção de um cineclube semanal e de um café).

Indução estatal

Parte dos 135 hectares do parque está ocupada por edificações irregulares, muitas cedidas a funcionários há mais de um século, originalmente com autorização formal ou informal da própria administração do jardim e do Ministério da Agricultura. Era prática administrativa corrente ceder lotes nos arredores do parque para os funcionários se fixarem e construírem moradia perto do local de trabalho.

Foi assim que gerações de famílias de funcionários se instalaram no parque e construíram uma comunidade no bairro do Horto Florestal, nos fundos do jardim. Três gerações depois, quem reside em algumas dessas casas são os netos. Construídas e ocupadas irregularmente, várias edificações abrigam oficinas de automóveis, um clube comercial, empresas privadas, como a Light, e até escritórios de instituições governamentais, como a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) e o Serviço Federal de Processamento de Dados (Serpro).

Há 30 anos, havia dentro da área do Jardim Botânico 140 casas. Hoje, elas são 621, um crescimento de mais de 400% de edificações não permitidas, desde 1982. Menos de 25% das moradias foram efetivamente autorizadas pela instituição no passado.

Um levantamento feito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro identificou que quase metade das casas irregulares se encontra em área de risco. Entre os seus 1,8 mil moradores, 26,7% ganham mais de sete salários mínimos, embora a Associação de Moradores do Horto (Amahor) declare que os residentes sejam pessoas de baixa renda.

Em 1980, a União iniciou um pedido de devolução dos imóveis irregulares. O impasse entre o Jardim Botânico e a Secretaria de Patrimônio da União (SPU) se acirrou em 2010, quando essa pediu a suspensão da execução das decisões judiciais de reintegração de posse. Em setembro de 2012 o Tribunal de Contas da União (TCU) determinou que as 621 famílias dentro dos limites do Jardim Botânico devem desocupar as áreas tombadas e de preservação ambiental que integram seu patrimônio.

Crise social

A decisão determina a saída dos ocupantes até outubro de 2013 e considera ilegal o processo movido pela SPU para a regularização fundiária. Ocorre que a Secretaria baseou-se num levantamento técnico dela própria, em parceria com a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UFRJ, que defende a conciliação dos interesses dos moradores com a expansão do parque e a preservação do ambiente. A solução seria reassentar as famílias que ocupam imóveis em situação de risco ou construídos na área do arboreto em local próximo, no Horto.

Advogado de um escritório que presta assessoria jurídica gratuita a moradores carentes, Rafael da Mota vem acompanhando o caso desde 2006. Para ele, o Tribunal de Contas da União não tem competência para intervir em políticas públicas de regularização fundiária, portanto a proposta da SPU deveria ser considerada. “Não é estranho que nesse contexto de especulação imobiliária no Rio de Janeiro e de decisões arbitrárias, o TCU tenha tanto interesse em remover essas pessoas – em sua maior parte de baixa renda – dali? O Tribunal deveria se preocupar com as contas públicas e não com as casas”, provoca.

Segundo a diretoria do Jardim Botânico, não há conspiração financeira nenhuma por trás do processo de desintrusão. “O interesse do jardim é público, coletivo, no intuito de abrir a instituição para todos, melhorar e ampliar o espaço”, afirma Guido Gelli, diretor de ambiente e tecnologia. Para a atual administração, há interesses privados favorecendo os invasores. Não se trata de uma disputa de ricos contra pobres, e sim de público e privado, da defesa do direito de toda a sociedade.

A presidente da Amahor, Emília Maria de Souza, rechaça o argumento e duvida da idoneidade do processo do TCU. “O interesse maior é dos ricos empresários que consideram nossa comunidade antiestética; eles não querem ver pobres morando num local tão valorizado. Acredito até que essa área já está loteada.”

Polêmica ambiental

A cozinheira Tina Melo da Silva, 53 anos, mora dentro dos limites do arboreto. Seu portão de saída de casa e do Jardim está virado para a rua Pacheco Leão, que margeia o fundo do parque. Seu sogro era funcionário do Jardim Botânico. Desde que nasceu, seu marido mora dentro da instituição. O processo de realocação das famílias tramita no Ministério Público há “muitos anos” e, segundo ela, nenhuma casa foi oferecida à sua família. Boatos apontam um lugar supostamente destinado ao reassentamento, na rua Dona Castorina, no Horto. Mas o espaço disponível não será suficiente para todas as famílias.

A questão se tornou ainda mais polêmica depois que o deputado federal Edson Santos (PT), irmão da presidente da Amahor, disse na Câmara dos Deputados que o Rio “não precisa mais de parques para passeio e circulação de pessoas”. O deputado afirmou ainda que Liszt Vieira (exdeputado do PT entre 1982 e 1986) “está levando em conta apenas seu desejo de ver o Jardim Botânico se transformar num Hyde Park ou num Central Park”.

A valorização do meio ambiente ainda é uma prática marginal no Brasil, haja vista os empreendimentos imobiliários em construção em reservas ambientais do Rio de Janeiro, como na Praia da Reserva ou na Área de Proteção Ambiental da Prainha, na zona oeste da cidade. No caso do Jardim Botânico, a solução do impasse passa por uma avaliação criteriosa da situação e da origem das 621 casas construídas dentro do parque, e de tolerância zero com novas edificações.

As leis de preservação do meio ambiente são recentes, da década de 1980, e a importância das áreas verdes para os centros urbanos só agora ganhou importância, quando o problema tornou-se crônico. “Algumas pessoas ainda veem áreas verdes como vazios a serem ocupados e colonizados”, observa a vereadora Sonia Rabello, do Partido Verde. Para ela, há um processo de mudança cultural ainda em curso. Desde Pedro Álvares Cabral, toda a área vazia é vista como passível de ocupação.

“Aqueles que defendem a permanência das famílias têm uma visão habitacional tributária da noção de que toda a terra pública serve para distribuição de renda”, ressalta Rabello. “Ocorre que o Jardim Botânico é um bem público para usufruto da cidadania do Rio de Janeiro.”