O premiado chef brasileiro Alex Atala não está satisfeito com a conquista de prêmios internacionais. Quer mudar a relação do homem com a comida e a dos cozinheiros com a produção de alimentos.

O paulistano Alex Atala acaba de ser eleito por seus pares o melhor chef do mundo. O reconhecimento aconteceu em abril, na cerimônia de premiação do The World’s 50 Best, da revista britânica Restaurant. Desde 2011 entre os dez melhores, o D.O.M., seu restaurante em São Paulo, é o sétimo colocado da lista e ocupa o segundo posto no ranking da América Latina. Mas o empenho e a projeção internacional desse chef brasileiro vão muito além dos prêmios. Visto como divulgador dos ingredientes nacionais e embaixador da Amazônia, Atala foi considerado, em 2013, nada menos do que uma das 100 personalidades mais influentes do mundo pela revista Time.

No ano passado, a atuação no meio gastronômico induziu o chef de 45 anos a ficar 156 dias fora do Brasil. “Foi um sucesso, fiquei superfeliz, mas não dá para viver assim”, desabafa. Por conta dos compromissos, o desafio atual desse cozinheiro que já foi DJ de danceteria e adepto do punkrock é concentrar-se nos seus três restaurantes na capital paulista – D.O.M., Dalva e Dito e Riviera – e levar adiante o Instituto Atá, que fundou e dirige com um grupo de ambientalistas para incentivar o uso de ingredientes naturais e promover uma culinária mais saudável para quem faz, para quem come e para quem produz alimentos. A proposta do Atá é ambiciosa: modificar a relação do homem com a comida e a natureza e a relação dos cozinheiros com os produtores de alimentos.

Como nasceu o Atá?
Nasceu de uma conversa curiosa com o fotógrafo Pedro Martinelli. Além de o Pedrão ser o maior fotógrafo da Amazônia, a aprovação ou desaprovação dele é algo que me importa. Então, um belo dia começo a usar pirarucu no cardápio, e ele me liga pra dizer: “Poxa, Atala, você tá usando pirarucu engordado aqui em São Paulo?” Sim, por quê? “Isso não se faz, é absurdo” – ele criticou. Aí, eu falei: “Pedrão, se esse peixe não tiver valor no mercado, não terá no mato; peixe de criatório é uma maneira de diminuir a pressão da pesca predatória.” Fiquei argumentando e quando achei que tinha conseguido convencê-lo, ele perguntou: “E o retorno à natureza? O que você vai levar pra lá de volta?”

Não muito, não?
Pois é, naquele momento, caiu a ficha. Eu me vi, mais uma vez, na vida, incorrendo num erro comum: extrair, extrair, extrair e não devolver. Essa conversa doeu e ficou na minha cabeça.

O Atá surgiu para criar um ciclo de sustentabilidade?
A gente não usa mais a palavra sustentabilidade. Atualmente, pessoas e empresas usam essa palavra para nomear ações feitas com o mesmo prazer com que vou ao dentista. Não tem prazer algum, é uma coisa carregada de culpa, não é cool. A gente precisa resignificar a palavra sustentabilidade. Acho que a comida pode ajudar nisso. Por quê? Porque comida é prazer, é sexy, é onda. As pessoas precisam entender que as pequenas atitudes tomadas por todos são poderosas. Precisamos reentender essa relação do homem com o meio ambiente e com o seu alimento.

Você tem agido como uma espécie de embaixador da Amazônia.
Alguém tem que fazer isso. O Peru está fazendo. Quando se fala em Amazônia, fala-se de sete países que dividem um bioma. É justo que todos reivindiquem a Amazônia. Portanto, o Peru não deve ser visto como inimigo aqui no Brasil, mas como um modelo. Lá, houve um investimento incrível e a gastronomia passou a ser entendida como cultura e como produto número 1 do país. A cozinha requer um trabalho de verdade. A frase que ouvi do [chef catalão] Ferran Adrià, e que tenho repetido há seis meses, é: “A maior rede social do mundo não é o facebook, é a cozinha.” Vou mais longe: comer e reproduzir são coisas que todos os seres vivos fazem. Esses, também, são os dois maiores prazeres humanos. O sexo se faz com dois e comer se faz em família. É uma atividade vital, humana, piramidal, de conexão. O momento que vivemos ilumina o poder transformador da gastronomia. Mesmo que a gente fale só de um prato, de um copo d’água e de uma taça de vinho, isso engloba um ritual: o que se come, como se come e tudo o que antecede a cozinha.

Você é festejado por ser um chef que valoriza a cultura e os ingredientes brasileiros. Mas também já disse que só foi reconhecido aqui depois de ter sido descoberto fora. Como assim? 
Quem vê de fora vê diferente, né? Lembro de ter perdido vários prêmios aqui no Brasil, quando já tinha um trabalho respeitável. Talvez faltasse amadurecimento da minha parte… Mas veja só: em 2005, a aula mais aplaudida do [festival gastronômico] Madrid Fusion foi a minha, e não repercutiu no Brasil. Daí, dois anos atrás, quando dei a primeira aula no Mad Food [evento dinamarquês que reúne chefs de todo o mundo] e falei de insetos e plantas, fui criticado. Alguns jornalistas, que escrevem blogs, disseram que eu não tinha que revelar ao mundo que no Brasil não se come formiga. Como se só existisse formiga lá no Alto Rio Negro, e aqui, no Vale do Paraíba, não existisse.

Numa época em que se discute a crueldade com os animais, no ano passado você degolou uma galinha diante do público no Mad Food. 
Fui capa da Time por causa disso, não esqueça (ri). Cuidado com a pergunta, porque ela pode estar muito errada…

Foi uma provocação?
Foi um tapa na cara, um motivo de reflexão. É por isso que meu trabalho vem repercutindo tanto. Quando levei insetos para serem comidos e falei que comer inseto era uma merda e que nós humanos não comíamos nem merda nem vômito, em seguida, perguntei o que era o mel (que é o vômito das abelhas). A plateia do Mad reverberou para o mundo um ponto de reflexão. A minha avó e a sua avó matavam galinhas, mas isso não nos parecia cruel. Meu último livro – D.O.M. Redescobrindo Ingredientes Brasileiros – tem um texto que se chama “Morte” e que foi lido antes da aula. Foi companhado por um vídeo lindo que trata da morte de animais e do meio ambiente, mostrando cenas fortes de derrubada de florestas e de avião.

E como você vê o foie gras?
Acho natural.  É facultativo querer comer ou não. Como usar drogas, fumar cigarro ou beber álcool.

É uma questão de liberdade?
Não existe errado, existe o que faz mal.

Mas faz mal para o pato, ou para o ganso superalimentado.
Existem métodos de fazer isso. Está-se produzindo foie gras como na época do Egito antigo. Essa conversa de que só existe foie gras com gavagem (alimentação forçada, por meio de tubos na garganta) não é verdade. Pra mim, o pior não é a gavagem, mas o fato de pregarem o pé do pato com pregos. As pessoas falam do foie gras, mas você sabe qual é a expectativa média de vida de um frango, hoje? Quarenta dias. Vamos acabar com essa hipocrisia do foie gras. Quem acha que sou caçador, que matei galinha, assista ao vídeo Samsarra, que mostra como a comida é produzida hoje em dia. Tá na internet.

Há porcos criados deitados em jaulas, para engordar sem se mexer
Tem coisa pior. Mas um porco não dói na minha consciência. O que dói são hectares e hectares de floresta sendo derrubados para produzir comida. Toneladas de agrotóxicos, pesticidas e adubos químicos usados. Em algumas cidades na divisa de São Paulo com Mato Grosso, há índices de câncer, cegueira e doenças respiratórias, como nunca existiu em nenhuma época no Brasil. Essa região é uma das maiores produtoras de soja. Vamos falar sério, o que dói mais: o porquinho que não vira de lado ou crianças nascendo doentes e condenadas a viver assim? Também precisamos entender que o cara da soja não é o demônio. É um sistema. Acabou a época do bem e do mal, do mocinho e do bandido. Estamos falando do maior paradoxo da humanidade nos próximos 20 anos. O mundo já entendeu…

E os cozinheiros ainda não?   
Talvez não tenham percebido a força desse movimento. Nós – eu e o René Redzepi, chef do Noma [dinamarquês, o melhor restaurante do mundo na lista dos 50 Best] – somos a primeira geração com esse raciocínio. Veja que o Ferran, com todos os méritos, não falava disso. Sei lá por que, não era a missão dele..

Quando você pensa em missão, pensa em aproximar quem produz e quem consome? 
Sim, porque esse é o meu ofício de todo o dia. Quando entendi que pegava o tucupi (caldo extraído da mandioca brava) lá do Amapá, onde queria comprar terras, e trazia para meu restaurante, e aí servia para o senador e para o empresário, estava na cara que precisava entender a situação e produzir benefícios para os dois lados. Não podia só tirar de lá e trazer pra cá. O que é cidadania?

Cuidar do próprio quintal?
Se as sociedades colaborativas não funcionassem, não existiriam formigas, abelhas. Trata-se de sociedades que aprenderam a trabalhar não em benefício individual, mas em prol de um ambiente. Há pouco tempo assisti a uma palestra de um gringo que, no final, disse: “Vocês acham que o homem está acabando com o mundo?” E a plateia em coro: “Sim”. E ele: “Não. O homem não está acabando com o planeta Terra, mas com a possibilidade de viver neste planeta. Se tirarmos a humanidade daqui, amanhã vai nascer o sol, chover, o mundo vai continuar.” Então, precisamos reentender essa relação do homem com o meio ambiente e com o alimento. É difícil destacar uma coisa da outra.

Atualmente, Lima é a capital gastronômica da América Latina. Anos atrás era São Paulo. O que houve?
Nunca foi São Paulo. A gente é que se achava (risos). O Brasil tinha uma miopia. Anos atrás dei uma entrevista dizendo que o Peru ia passar o Brasil. Disseram que eu era exagerado.

A revolução que a gastronomia causou no Peru está longe daqui?
Sim, porque no Brasil ela não é entendida como cultura. Não temos um governo que olha para isso. Nem tem interesse em unir o povo em favor de uma teia de benefícios ao ambiente.