Filho do filósofo francês Jean-François Revel, o monge budista Matthieu Ricard propõe o altruísmo como ferramenta mundial para reverter a degradação do homem e da natureza

Mais distante do que gostaria da sua casa – o Monastério de Schechen, em Katmandu, no Nepal –, o monge budista Matthieu Ricard esteve no Brasil em maio com intuitos quase subversivos para a ordem mundial dos dias de hoje. O religioso veio divulgar seu novo livro, A Revolução do Altruísmo (Editora Palas Athena).

“O altruísmo é mais do que nunca uma necessidade, até mesmo uma urgência”, define Ricard logo na introdução. Nas mais de 700 páginas da obra (em português), ele discorre sobre como o cuidado e a compaixão pelo outro podem reverter a degradação do homem e da natureza. O monge tem grande experiência pessoal no tema. Há 12 anos mantém a organização humanitária Karuna-Schechen, que realiza mais de 140 projetos no Tibete, no Nepal e na Índia, nas áreas de educação, saúde e serviços sociais.

Por pura coincidência, deixou Katmandu três dias antes de os primeiros terremotos atingirem a cidade. Embora quisesse muito voltar, ao conversar com os amigos que estão lá, decidiu que ficar no exterior também podia ser de grande ajuda. Ganhou espaço na mídia e conseguiu levantar fundos para os afetados. “Todo dia quero voltar, mas como só eu estou fora, vou continuar buscando ajuda por aqui.”

Mas essa não foi uma coincidência milagrosa. Ricard passa muito tempo viajando. O ex-pesquisador, nascido na França, passou metade da sua vida entre os intelectuais do Ocidente e outra metade entre mestres espirituais do Oriente, até que ganhou o mundo com seu primeiro livro. Aos 52 anos de idade, publicou O Monge e o Filósofo, escrito a quatro mãos com o pai, Jean-François Revel, conceituado filósofo agnóstico. 

Desde então produziu outras sete obras (quatro delas de fotografia) e rea­lizou muitas palestras – duas fontes de renda que alimentam sua organização. Além disso, participou em estudos sobre os efeitos da meditação no cérebro humano. Em 2012, foi intitulado “o homem mais feliz do mundo” por ter alcançado índices até então inexistentes na escala criada para as medições. Por essas e tantas outras coisas, é respeitado em todo o mundo, inclusive pelo próprio dalai lama, líder religioso do budismo tibetano, de quem é intérprete e conselheiro.

Planeta – Como foi a decisão de mudar sua vida tão radicalmente, aos 26 anos, abandonando uma promissora carreira científica para se tornar monge budista no Oriente?
Ricard –
Eu não mudei a minha vida. Quando você percorre uma trilha, desce uma montanha e encontra um vale. Você não mudou nada, só continuou seu caminho. Não tem a ver com rejeitar e abandonar tudo. É questão de explorar várias possibilidades na vida e descobrir o que faz mais sentido para você, quando ainda está em tempo. Se eu fosse decidir alguma coisa agora, às vésperas dos 70 anos, talvez já fosse tarde demais.

Planeta – Concordo, mas…
Ricard –
Sim, entendi o que você quis dizer. Agora eu vou dar a resposta que você está esperando. Eu estava dedicado a estudar como os cromossomos das bactérias se dividem, no Instituto Pasteur, na França. Mas conheci um mestre tibetano que ensinava os mecanismos do sofrimento e da felicidade, como entender a própria mente, como ser um ser humano melhor. Então pensei: “Essa é uma ciência ainda melhor”. Escolhi trocar algo que achava muito interessante por algo ainda mais interessante para mim, para a minha aspiração de fazer o melhor com o tempo que tenho nesta vida. Estou muito feliz por ter feito essa escolha naquele momento, em vez de esperar minha aposentadoria para então fazê-lo.


À esq., crianças meditam em Katmandu, no Nepal, depois dos tremores de terra que destruíram casas, instituições e vários monumentos históricos, inclusive religiosos. À dir., Ricard autografa a nova obra

Planeta – De que forma seu novo livro liga o altruísmo aos problemas ambientais enfrentados hoje?
Ricard –
Existe o desafio pessoal, que enfrentamos da manhã até a noite, dentro das nossas mentes. Mas, olhando mais globalmente, os maiores desafios são reconhecer as necessidades de curto, médio e longo prazo. No imediato, a questão é sobreviver, o que envolve os aspectos econômicos da vida. A economia muda rapidamente, e você não tem controle sobre as bolsas de valores, os preços, etc. Há também a questão da qualidade de vida, que já é mais de médio prazo. Costuma envolver os próximos dez anos, a formação de uma família, como desenvolver seus potenciais, por exemplo. Mas agora temos uma outra dimensão, que não existia antes: a de longo prazo. Porque já somos os principais agentes a determinar o destino das futuras gerações. Não só dos seres humanos, mas de toda a natureza. Dez mil anos atrás, havia apenas 5 milhões de humanos sobre a Terra, um número insignificante para o meio ambiente. Nos últimos séculos, a população cresceu muito – hoje somos 7 bilhões – e houve um aumento expressivo do nosso impacto sobre os ecossistemas. Entramos no Antropoceno, a era em que o homem passa a ser o principal causador das mudanças no planeta. A taxa de extinção de espécies animais é grande exemplo disso. De 1950 para cá, perdemos 30% do total de espécies, devido à ação humana.

Planeta – Como o altruísmo se encaixa nesse contexto?
Ricard –
A questão é quanto eu me importo com as futuras gerações. Se não damos a mínima, não há por que se preocupar com o meio ambiente. Já se você tiver mais consideração pelos outros, não há como ignorar a situação que vai deixar para as futuras gerações. O problema é que quando economistas, assistentes sociais e ambientalistas conversam, não falam a mesma língua. Só há um conceito que pode fazer com que todos se entendam, que é simplesmente ter mais consideração pelos outros. E isso é altruísmo. Assim passamos a ter uma plataforma em comum para discutir, um conceito para fazer as pessoas entenderem como trazer bem-estar para a sociedade e também ter prosperidade para reduzir as diferenças sociais.

Planeta – Será que os altos escalões do mercado chegarão a pôr esse conceito acima de seus interesses pessoais e profissionais?
Ricard –
Sou frequentemente convidado para o Fórum Econômico Mundial de Davos, na Suíça. Já fui sete vezes. Da primeira vez, dez anos atrás, os assuntos estavam totalmente relacionados com economia, petróleo, consumismo. Mas na abertura deste ano, a primeira frase do fundador e presidente executivo do evento, Klaus Schwab, foi: “Vamos dedicar esta semana ao cuidado e à compaixão”. Talvez sejam apenas palavras, talvez nem todos sigam essa proposta, mas, ainda assim, isso é um indicativo. É um pequeno sinal, assim como outros que vêm aparecendo em vários cantos antes inusitados. Compaixão não era um tema tratado por profissionais da área financeira.


Ricard é tradutor-intérprete e conselheiro de dalai lama, líder religioso do budismo tibetano

Planeta – Muitas pessoas defendem que se você se sente bem por ser altruísta, quer dizer que, no fundo, é egoísta.
Ricard –
Já usaram de todos os argumentos para tentar provar que só existe egoísmo no mundo, mas não tem sentido. Todos os estudos mostram que quando se faz o bem, sentir-se bem é um efeito colateral, e não a razão de fazer o bem. Se alguém pula no trilho do trem para salvar alguém, não está pensando “vou me sentir tão bem quando eu salvar essa pessoa”; ele pode morrer também. Esse efeito colateral só se dá quando sua principal intenção é ajudar o outro. Se sua atitude altruísta não for genuína, torna-se um sacrifício para você. É como um fogo que queima e não produz calor. A natureza do fogo é produzir calor. Claro que as pessoas não são 100% do tempo altruístas. Mas é erro pensar que só existe egoísmo. Existe altruísmo numa larga escala, que nós costumamos ignorar. Os olhares sempre se voltam para o individualismo e a violência, principalmente na mídia, e isso causa uma distorção.

Planeta – Para o sr., é possível uma pessoa egoísta virar altruísta?
Ricard –
A plasticidade do cérebro e a epigenética dizem que é possível mudar. A prática da meditação – que é um treino para a mente – permite aprender qualquer coisa e despertar os genes. Porque os genes são como várias lâmpadas distribuídas em um ambiente. Algumas podem estar desligadas, mas ainda assim estão lá. É só questão de acioná-las. E isso não acontece uma única vez na vida. Eles estão o tempo todo ligando e desligando. Quando você dorme, 20% dos genes dos seus neurônios dormem também – ou seja, não se expressam. E porque todo ser humano tem potencial para o altruísmo, pode-se despertá-lo – é só questão de praticar. Praticar o altruísmo em si ou a meditação de compaixão. Várias pesquisas feitas nos últimos 15 anos mostram que é possível promover grandes alterações funcionais e estruturais no cérebro. Já está provado que basta praticar a meditação da compaixão oito horas, uma única vez, para despertar uma nova expressão dos genes. Ou que meditar por apenas duas semanas, 20 minutos por dia, já melhora a atitude em relação aos outros, levando qualquer pessoa a se tornar mais altruísta. Segundo muitos especialistas que consultei, somente os psicopatas dificilmente mudam, porque essa é uma característica genética forte. Fora esse grupo – que soma em torno de 1% a 2% da população mundial –, não há um segredo, é só questão de prática e tempo.