No Carnaval deste ano, vesti mais uma vez a camisa do bloco. Não é um bloco qualquer, é diferente. Dele participam cada vez mais pessoas no mundo todo. Talvez até mesmo você participe, sem saber.

O bloco é o Encontro da Nova Consciência, um incrível festival multicultural que acontece durante o Carnaval, desde 1992, na cidade serrana de Campina Grande, na Paraíba, e reúne representantes das artes, ciências, filosofias e tradições religiosas. O propósito maior do evento, promovido pela Organização Nova Consciência, é unir as forças por um planeta mais equilibrado e uma humanidade mais harmonizada. Um propósito dos mais nobres, sim, mas existe gente que discorda dele – é triste mas é verdade. Antes de falar disso, porém, voltemos um pouco no tempo.

Viajei para Campina Grande em 1996, como convidado do evento, para fazer uma palestra. Foi meu batismo oficial na Nova Consciência.

Voltei de lá impressionado. Com tudo. Com a incansável dedicação dos organizadores. Com o charme da cidade e a hospitalidade do povo. Com os adolescentes da região que crescem antenados com valores como pensamento holístico, consciência ecológica e cidadania planetária. E voltei impressionado, principalmente, com algo que eu não tinha certeza ser realmente possível: a perfeita união das diferenças.

…Encontro ecumênico

Ato ecumênico; jovens hare krishnas no encerramento do evento; e a ialorixá Sandra Epega e Rubens , participantes do congresso em uma caminhada pelas ruas de Campina Grande; cena de um batizado coletivo ocorrido durante o Encontro da Nova Consciência.

A realidade é complexa demais para caber num só modo de experimentá- la. Por isso existem as diversas artes, ciências, filosofias e religiões, para que, através de diversos caminhos, experimentemos ao máximo a infinitude da realidade. Podemos ver esses caminhos como excludentes, já que cada um deles entende a realidade a seu modo, mas também podemos ver de outra forma, como um dia eu vi no Teatro Municipal de Campina Grande, enquanto observava representantes de várias religiões de mãos dadas. Naquele momento me senti olhando do alto e vi que os diversos caminhos se cruzam em determinados pontos e que o desenho que eles formam com esses cruzamentos lembra um mosaico. Por um instante, breve mas intenso, eu vi esse mosaico, colorido e vibrante, uma coisa viva, pulsante, alegre…

Com a lembrança dessa visão eu retornei para casa. E passei muitos dias com a sensação de fazer parte do mosaico. Nos anos seguintes, voltei a Campina Grande e um dia compreendi… Quanto mais nos elevamos além das diferenças, o que vemos deixa de ser um mosaico, pois somem as linhas divisórias, e surge então… uma coisa só… sem fronteiras entre si… Surge a humanidade! Una, multicolorida, linda e diversa.

O exemplo de Campina Grande contagia. Aquelas pessoas todas unidas, umas pela arte, outras pelas idéias, outras pela fé, e todas pelo futuro da espécie e do planeta, me provam a cada ano que somos diferentes, sim, mas essa diferença logo se dissipa ao se mudar o jeito de olhar. Ano após ano aquelas pessoas me mostram que, se esquecermos um pouco do que nos faz diferentes e nos concentrarmos no que temos em comum, algo mágico acontece: nós nos tornamos, de fato, uma coisa só, um único organismo. Uma consciência una.

Fogo intolerante

Nesses 16 anos de Encontro da Nova Consciência, o evento cresceu tanto que hoje incorpora mais de 50 eventos paralelos, entre encontros, seminários, vivências, oficinas, espetáculos artísticos, mostras, feiras e passeios.

Milhares de pessoas saem de suas casas, boa parte vinda de outras cidades, para se unirem sob o lema da paz e da harmonia. Apesar das imensas dificuldades de se realizar um evento desse porte num dos mais pobres Estados do País, e tendo sempre que se equilibrar entre os conflitos políticos e eleitoreiros da região, o encontro prossegue. Não é fácil chamar a atenção para questões como paz, educação e ecologia em pleno reinado de Momo, mas a Nova Consciência não desiste e todo ano bota seu bloco na rua.

…Ritual xamânico

Chandra Mukha Swami (com o microfone) durante a caminhada. Abaixo: dois momentos de uma cerimônia xamânica.

Surgiu nos últimos anos, porém, uma nova dificuldade, que surpreende por bater-se radicalmente contra a pacífica proposta do evento: o fanatismo religioso. Desde o início grupos que se dizem evangélicos organizados discordaram do caráter macroecumênico e multicultural do evento e não suportaram a idéia de Campina Grande organizar um encontro para unir cristãos, muçulmanos, judeus, umbandistas, hare krishnas, índios, bruxas e ciganos, além de roqueiros, jogadores de RPG, dançarinas do ventre, líderes comunitários, prostitutas e homossexuais. Todos sempre são convidados a participar, mas para esses “evangélicos” tudo isso é diferença demais para ser tolerada e infelizmente eles nunca aceitaram se integrar.

Com o tempo, essa oposição se acirrou, apesar de líderes evangélicos terem criado seu próprio evento, que hoje acontece em paralelo ao da Nova Consciência, ocupando outros espaços da cidade. Mas a estratégia missionária dessas facções radicais não parou aí: além de realizar palestras onde insistem que as outras religiões são “obra do demônio”, seus integrantes fazem manifestações de repúdio ao Encontro da Nova Consciência, ocupam espaços não permitidos e xingam as pessoas na rua.

Inquisição. Foi disso que lembrei este ano quando um grupo vestido de preto acendeu tochas à entrada do teatro onde o Nova Consciência se realiza e distribuiu panfletos, impedindo as pessoas de entrar e gritando sobre uma tal guerra entre o bem e o mal. Enquanto isso, lá dentro do teatro, duas bruxas wiccas falavam de amor à humanidade e respeito à natureza. Pela primeira vez, em 16 anos, foi preciso chamar a polícia, e o caso agora está na Justiça, pois configura desrespeito ao livre exercício da religiosidade, o que é garantido pela Constituição brasileira. Evidentemente não podemos cair no erro da generalização. A intolerância ocorre em todas as religiões e mesmo entre os evangélicos há pessoas que lutam pelo diálogo inter-religioso, como o pastor presbiteriano Nehemias Marien, falecido em 2006, que participou do evento desde a sua criação. Mesmo criticado por alguns de seus irmãos de religião, Nehemias perseverou e hoje sua vida é um exemplo para todos os que lutam pela paz e união entre os diferentes.

Esses fatos de Campina Grande são o microcosmo de uma macrossituação que se repete todos os dias no mundo inteiro e nos assombra: o fanatismo religioso. Mesmo com todas as sangrentas lições que a história já nos ensinou, o fanatismo está bem vivo. Em vez de buscar o que temos em comum, o extremista religioso se apega às diferenças. Em vez de reconhecer e lidar com o mal dentro de si mesmo, o fanático projeta-o inconscientemente no outro, na outra religião, na outra cultura, na outra torcida, e assim a arquetípica guerra entre o bem e o mal é travada sempre no exterior, enquanto nos recônditos da alma o mal é alimentado pela própria negação de sua existência interior.

Não sei quantas cenas lamentáveis o fanatismo religioso ainda nos trará. Mas, como um animal que pressente a própria morte, ele agora se debate com as últimas forças que lhe restam. Sim, pois está condenado. Por ele mesmo. Em sua visão estreita, o fanático não entende que a espécie humana só sobreviveu até hoje porque soube misturar-se e fazer da diversidade uma força evolutiva. O fanático é, por essência, unilateral, e entende um só caminho, o seu; e só admite uma única forma de vivenciar a realidade, a sua. Sem aceitar a natureza múltipla da realidade, o fanatismo não aceita a própria realidade e luta contra ela. Por isso está condenado.

Contra algo que crê firmemente em ilusões como superioridade racial e religiosa, os argumentos de nada adiantam. A luta então deve ser travada dentro da lei, garantindo legalmente o exercício das crenças e punindo o desrespeito à liberdade. Devemos também incentivar as pessoas a conhecer o mundo e, assim, a perder o medo do diferente. Devemos incentivá-las a expandir seus horizontes e, para isso, dispomos da facilidade das comunicações, dos transportes rápidos, da Internet. Sim, a globalização traz coisas ruins, mas também traz a vantagem de nos pôr em contato uns com os outros como jamais ocorreu antes.

Imagino que valores como cidadania planetária, liberdades individuais e respeito às diferenças podem soar ingênuos num mundo em que os fanatismos parecem ser invencíveis. Mas toda revolução, no início, é uma utopia.

Apesar do fanatismo, os valores de uma nova consciência se espalham mundo afora, feito um bloco que arrasta a multidão pela avenida. A Terra é meu país e a humanidade minha família – este é o lema que brilha em seu estandarte revolucionário. É por isso que todos os anos vou a Campina Grande renovar minha esperança, vestir a camisa desse bloco. Talvez você, mesmo sem jamais ter ido lá, também faça parte dele.

Ricardo Kelmer (www.ricardokelmer.net) é escritor e roteirista e mora em São Paulo.