Pesquisador Carlos Rittl é um dos cientistas que enviaram à UE propostas para aprimorar acordo com Mercosul. “Piores números do desmatamento vieram depois de 2019. Se ele fosse bom, rumo das coisas seria outro”, diz.Devido à escassez de mecanismos que garantam a proteção ambiental, o acordo comercial entre a União Europeia (UE) e o Mercosul tem sido alvo de críticas desde a sua assinatura, em junho de 2019. Para tentar aprimorar essas lacunas do pacto, um grupo de pesquisadores de diversas universidades enviou na semana passada a integrantes da Comissão Europeia e a deputados do Parlamento Europeu uma série de propostas práticas.

Divididas em cinco pilares, as propostas abordam o enfrentamento ao desmatamento na Amazônia e em outros biomas, o combate às mudanças climáticas e à degradação ambiental, o reconhecimento da assimetria na relação entre os blocos, o aprimoramento da base de dados e de consultas em relação aos impactos ambientais do pacto e o fortalecimento do apoio à sociedade civil.

O documento foi formulado por 11 pesquisadores europeus e brasileiros de diferentes áreas acadêmicas, entre eles o especialista em biologia tropical e recursos naturais Carlos Rittl, que atualmente é pesquisador visitante do Instituto de Estudo Avançados em Sustentabilidade de Potsdam, na Alemanha.

“Os piores números do desmatamento vieram depois de 2019, quando o acordo foi assinado. Se ele fosse bom o suficiente, o rumo das coisas no Brasil já teria mudado radicalmente”, avalia Rittl. Em entrevista à DW Brasil, Rittl, que foi secretário-executivo do Observatório do Clima, fala sobre as problemas do acordo comercial entre a UE e o Mercosul e aborda as propostas apresentadas no documento acadêmico.

DW Brasil: Quais são os principais problemas do acordo comercial entre a União Europeia e o Mercosul?

Carlos Rittl: O primeiro é a falta de enforcement no capítulo de comércio e desenvolvimento sustentável. Apesar de haver um capítulo todo dedicado ao assunto, na prática, ele não é vinculado aos mecanismo de compliance e de disputa do acordo. Ele é um capítulo cheio de intenções muito nobres, mas carece de mecanismos que assegurariam que países e empresas, que acessam os benefícios do pacto, cumpram essas cláusulas.

Em suma, quando olhamos para o acordo, algumas das recomendações só teriam efeito se houvesse uma reabertura do acordo para melhorar os textos acordados em 2019. Sem isso, o capítulo de desenvolvimento sustentável não vai assegurar que os países sejam cumpridores. Atualmente, o cumprimento desses compromissos, bonitos no papel, mas sem um caráter legal vinculante forte, depende única e exclusivamente da boa vontade dos países.

Na semana passada, você e outros pesquisadores publicaram um conjunto de propostas para aprimorar o acordo em relação a questões ambientais. Quais são os principais pontos desse documento?

O documento é extenso e está dividido em cinco conjuntos de propostas. O primeiro é relacionado a medidas para o controle do desmatamento, entre elas, a demanda para que países como o Brasil, que tem compromissos nacionais, indiquem que estão combatendo o desmatamento como pré-condição para se considerar a continuidade das conversas. As propostas também são voltadas a assegurar o respeito ao direito de povos indígenas, o controle das emissões de gases de efeito estufa por parte dos países. Há ainda outros elementos das recomendações que partem do reconhecimento de que há uma assimetria, um desequilíbrio entre os benefícios obtidos pelos países europeus e os obtidos pelos países do Mercosul.

Como ocorre essa assimetria?

Basicamente, a Europa exporta produtos com alto valor agregado para o Mercosul, enquanto o Mercosul exporta commodities para a Europa. Devido a essa assimetria, é necessário se pensar em como ampliar o escopo de produtos e assegurar que haja um equilíbrio. Fazendo um comparativo com o que aconteceu ao longo de séculos, é basicamente países em desenvolvimento vendendo produtos primários e recebendo produtos manufaturados.

Essa assimetria não decorre somente de um desequilíbrio de forças, pois os países do Mercosul colocaram na mesa as condições que queriam, inclusive para que as questões ambientais e o desenvolvimento sustentável não fossem vinculadas diretamente ao mecanismo de compliance. Mas esse desequilíbrio existe, e se o acordo é, em tese, não apenas para gerar regras ou livre comércio, mas pretende de fato contribuir com esforços globais para o combate ao aquecimento global e à redução de desmatamento, é necessário que tudo isso seja reconsiderado no escopo do pacto. Vender carro de um lado pro outro e bife do outro lado para o primeiro não é algo considerado como parte da solução quando se pensa no enfrentamento das mudanças climáticas.

O interessante das propostas formuladas pelo grupo de pesquisadores é que elas não apenas preveem obrigações aos países do Mercosul, mas também aos países europeus. Umas delas seria o fim da exportação de produtos proibidos na Europa para o Mercosul, como agrotóxicos. A Europa estaria aberta a esse tipo de medida?

Deveria estar, porque poderíamos chegar ao cenário em que há agrotóxicos proibidos na Europa sendo utilizados em lavouras no Brasil, e esses produtos acabarem sendo exportados para a Europa. Se a União Europeia quer ser coerente não apenas com o que colocou no acordo, mas também com a maneira como vendeu o acordo, ou seja, para ajudar os esforços de enfrentamento de crise climática e para o desenvolvimento sustentável, é preciso ajustar suas leis e suas próprias regras. Não é possível que produtos proibidos na Europa sejam exportados com os benefícios do pacto para países do Mercosul.

Outro ponto importante é o papel da UE de mercado consumidor e a responsabilidade que isso acarreta. O mercado consumidor tem que ser visto como corresponsável pelos problemas que causa nos países de onde vêm os produtos que compra, seja no desmatamento, seja na violência contra povos indígenas.

Se modificado, o acordo poderia vir a ser um meio que contribua para que as metas do Acordo de Paris, para conter o aquecimento global, sejam alcançadas? Não só no Mercosul, mas também na Europa?

Precisaria ser melhorado substancialmente para dar essa segurança. Como ele está, não ajudará na implementação das metas de Paris, e a tendência é de aumento de emissões em países em desenvolvimento, não somente no Brasil, pois o desmatamento também é um problema na Argentina, no Paraguai. Para que fosse um elemento indutor, ele deveria apoiar única e exclusivamente atividades que geram reduções de emissões. A União Europeia vai vender somente carro elétrico para o Brasil? Estamos falando só de exportação de tecnologia verde e de produtos sustentáveis para o Mercosul? Não se tem segurança disso hoje, assim como da parte dos produtos que sairão do Mercosul. Além disso, o aumento do transporte de carga entre os continentes, que deve ocorrer com navios altamente poluentes, ficou de fora das medidas relacionadas ao acordo.

As propostas acadêmicas foram enviadas a integrantes da Comissão Europeia e do Parlamento Europeu na semana passada. Já houve alguma resposta?

Houve uma abertura para o encaminhado das propostas, mas não houve ainda uma resposta. Mas a resposta tem que ser dada de fato na melhoria dos processos e na coerência do diálogo político com as belas palavras que estão no capítulo de desenvolvimento sustentável e com todas as outras promessas da União Europeia de ser líder pelo exemplo de sustentabilidade.

Aqueles que defendem o acordo afirmam que ele dá garantias suficientes em relação a questões ambientais e que, sem o acordo, será muito pior, por exemplo o desmatamento no Brasil tenderia a aumentar. Como você avalia esse argumento?

Os piores números do desmatamento vieram depois de 2019, quando o acordo foi assinado. Aumentou em 2019 e em 2020. Se ele tivesse garantias suficientes, a própria União Europeia não estaria falando em protocolo ou declaração conjunta adicional relacionada à sustentabilidade. Se ele fosse bom o suficiente, o rumo das coisas no Brasil já teria mudado radicalmente.

Se o acordo trouxesse essas garantias, o governo de Jair Bolsonaro jamais enviaria para o Congresso as medidas que definiu como prioritárias para 2021, como a abertura de terras indígenas para mineração e agropecuária, o enfraquecimento do licenciamento ambiental e a legalização da grilagem. Nada mudou, o aumento do desmatamento é a agenda de Bolsonaro sendo executada como ele planejou.

Essa afirmação de que sem acordo é pior cai por terra ao olharmos os números de desmatamento e de violência contra os povos indígenas. Se o acordo representasse um risco para o governo Bolsonaro, e se o desmatamento fosse um risco para o Brasil não ampliar o comércio com a Europa através do acordo, o desmatamento já teria caído, mas não está caindo.