Para ex-presidente do IBGE, orçamento reduzido e pandemia fariam com que sondagem não fornecesse um retrato adequado para o planejamento de políticas públicas na próxima década.O Brasil terá que encarar nos próximos dias mais um debate polêmico na sua longa lista de problemas: o Censo demográfico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). A partir desta sexta-feira (07/05), o Supremo Tribunal Federal (STF) vai analisar no plenário virtual a liminar do ministro Marco Aurélio Melo que obrigou o governo federal a assegurar o orçamento mínimo necessário para a realização da pesquisa nacional em domicílios.

A sondagem mostra o retrato mais fiel do país. Realizado a cada 10 anos, como prevê a Constituição, o Censo deveria ter sido feito em 2020, mas foi adiado para este ano devido à pandemia. O governo federal, porém, não assegurou o orçamento necessário em 2021 e cancelou o levantamento.

O caso chegou ao STF a partir de questionamento do governador do Maranhão, Flávio Dino (PCdoB). Marco Aurélio entendeu que o governo federal deve assegurar os recursos e fazer o Censo, pois se trata de uma obrigação constitucional. A leitura política adjacente ao questionamento do governador é a de que a Jair Bolsonaro não interessa fazer o Censo, pois ele vai revelar uma nação em ruínas, destruída pelo coronavírus e por mazelas econômicas e sociais estruturais que só se agravam, e, assim, prejudicar as chances de reeleição do presidente em 2022.

Roberto Olinto Ramos, que presidiu o IBGE entre 2017 e 2019 e é especialista em estatística há quatro décadas, cobra um debate público sobre o Censo, envolvendo o Congresso, a sociedade e especialistas. Em entrevista à DW Brasil, ele afirma que era favorável ao Censo em 2021, mas mudou de opinião.

Por razões estritamente técnicas, ele avalia que em 2022 deverá ser mais viável ter um Censo que poderá assegurar a qualidade necessária à sondagem. As informações do IBGE são cruciais para fundamentar políticas públicas na saúde, educação, habitação, indigenistas e de combate à pobreza e à desigualdade.

“Na pandemia, você não está pegando um retrato viável para ser usado como planejamento em uma década. Esse Censo é adequado?. Vai ser falho, não tem jeito”, diz Ramos, que é professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV).

Além de lamentar a falta de transparência do IBGE e a contaminação política de debates técnicos, ele afirma que o instituto foi abandonado pelo Ministério da Economia e que a frente parlamentar no Congresso que se envolvia nestes debates foi desfeita.

DW Brasil: O senhor se surpreendeu ao saber que não haveria Censo em 2021 por falta de verba?

Roberto Olinto Ramos: Hoje, no Brasil, nada me surpreende mais. Esse Censo, no atual governo, vem sendo desde o princípio debatido de forma bastante inédita. A questão do Censo é técnica. Um Censo não é um projeto que se realize rapidamente. Ele se constrói ao longo do tempo, com discussão entre o IBGE e comunidade de especialistas. Quando começou o atual governo, se criou a polêmica da redução do questionário e o argumento era o ajuste fiscal. O lamentável disso foi que uma questão técnica acabou virando discussão quase política. Uma enorme tolice. Os pontos fundamentais, e de que até hoje eu não me convenço, eram que se você diminuir o questionário reduz o custo. Não me parece argumento sólido. Chegou a pandemia e obviamente ela inviabilizou o Censo, porque, por questões sanitárias, não se conseguiria chegar a todos os domicílios. A pandemia não terminou. Ao contrário, é pior este ano. A vacinação não vai permitir a realização do Censo em agosto e setembro, como planejado. Eu achava que deveria ser [feito o Censo] em 2021, mas mudei minha minha opinião neste cenário.

Por quê?

O Censo é extremamente detalhado, e essas informações são base para um planejamento de 10 anos. Na pandemia, você não está pegando um retrato viável para ser usado como planejamento em uma década. Em 2022 você teria um momento de maior estabilidade na população, maior tranquilidade para as pessoas responderem. A pandemia criou mudanças: desemprego, pessoas empregadas em casa, pessoas que mudaram de endereço para se protegerem, e outras questões que não sabemos. Por isso seria razoável adiar. E surge uma nova questão que é o orçamento. O orçamento inicial para o Censo todo era planejado na ordem de R$ 3,6 bilhões, mas para três ou quatro anos, com R$ 3,1 bilhões para o ano da operação. Cerca de 220 mil pessoas deveriam ser pagas neste ano para a operação. Esse orçamento foi sendo reduzido e chegou a R$ 2 bilhões neste ano. A direção do IBGE diz que seria viável fazer um Censo com R$ 2 bilhões. Eu tenho lá minhas dúvidas. Acho que o risco de fazer um Censo de qualidade pior está envolvido neste orçamento.

O Brasil então está misturando os debates, da restrição orçamentária para fazer o Censo com a questão técnica sobre que qualidade que teria a sondagem em plena pandemia?

É exatamente isso. Uma coisa é discutir o Censo na grande questão sanitária. A outra coisa é o orçamento. O orçamento foi literalmente massacrado. De R$ 2 bilhões, se reduziu para R$ 50 milhões, R$ 70 milhões. E aí não tem dinheiro para fazer o Censo em 2021. Mas, com o dinheiro que estaria alocado ao IBGE, não teriam condições nem de preparar o Censo para 2022. Se unificaram as posições: tem que ter Censo, o Censo é fundamental para o país. Mas como resolver isso? Se não tiver um orçamento mínimo para este ano, cria um problema de preparação. O IBGE se tornou um órgão muito fechado, e eu lamento isso. Hoje estamos com dois problemas. Problema 1: teria que ter orçamento em 2021. Se tiver orçamento, apesar de eu discordar, vamos fazer o melhor possível. Mas tem que ter discussão sobre isso. Problema 2: se vai fazer para 2022, tem que preparar o Censo. Uma das medidas preliminares é atualizar um cadastro de endereços. Isso não foi feito no ano passado. Há uma série de questões que preocupam. O Ministério da Economia se omitiu. O IBGE está abandonado. Hierarquicamente, o IBGE está dentro do ministério, portanto, ele tem que tomar a frente desta questão, e as decisões precisam ser tomadas imediatamente. Vão fazer uma coisa sobre as quais as pessoas nem têm noção.

A decisão do ministro do STF, Marco Aurélio, que obriga o Brasil a fazer o Censo, olha para a questão constitucional, de que deve haver o dinheiro no orçamento para o Censo, mas não leva em consideração esses aspectos técnicos?

Obviamente eu sou favorável à decisão do STF. Tem que ter Censo. Mas me entristece profundamente quando uma questão de agenda estatística e de geoinformação necessita chegar ao Supremo. Isso nunca aconteceu. Censos são obrigações legais. Está na Constituição, e tem uma lei de 1991 sobre isso. É correta a decisão do ministro? Sim, tem que fazer o Censo. Mas há perguntas que precisam ser colocadas. Quanto de orçamento precisa? É para ser ser feito neste ano? E se for feito neste ano, vamos discutir como vai ser feito. Você não pode acreditar que um projeto de Censo feito para 2020, quando não existia a covid, é o mesmo projeto que vai ser feito pós covid-19. E nem é pós, estamos no meio. Teria que ser repensado. Esse Censo é adequado? Considerando essa fase de transição, talvez não tenha que ser feita uma nova operação estatístico-demográfica daqui a 3, 4 anos? Em 2021 vai ser falho, não tem jeito. E tem que se encarar como fazer estatística na pandemia. A taxa de não resposta da PNAD [Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílio] Contínua hoje é de 50%, as pessoas estão se negando a responder. Vai fazer censo usando internet e telefone? Calma. A parcela da população que você pode considerar que responderia pela internet corresponde a 6%. No mundo não tem pesquisa censitária por telefone. E se baterem na sua casa, sem vacinação, mesmo que o pesquisador tenha EPI [Equipamento de Proteção Individual], você vai querer responder? As pessoas estão estressadas, indignadas, com medo de morrer porque não tem vacina. Vai fazer um censo neste momento? Eu acho questão de bom senso ter coragem de não fazer. Por outro lado, eu entendo o IBGE: existe o medo de não ter dinheiro para não fazer nunca esse Censo. Estamos numa situação de dilema. É leviano dizer que a realização do Censo em 2021 terá a qualidade do Censo em 2022. Não é verdade.

Como classificaria a importância de um Censo para o país quando falamos de planejamento de longo prazo?

É uma longa lista de impactos. A geografia do país depende desse Censo, o planejamento em saúde. Como vamos distribuir vacina pela população? Estamos distribuindo em cima de uma base populacional projetada há 10 anos. Você não tem possibilidade de planejar o SUS. Onde é que eu vou botar equipamento e médico? Eu não consigo planejar a educação, porque eu não sei a idade das pessoas. Tenho que saber onde é que estão as crianças, os adolescentes, os idosos. Você não consegue fazer política habitacional, porque eu não sei quem aluga e quem é proprietário. Como é que você pode pensar o Bolsa Família se não tem distribuição de renda efetiva da população? Onde está a pobreza? Esse Censo iria levantar pela primeira vez os quilombolas, mas também indígenas. Como vão fazer política indigenista? Qual é o retrato que eu preciso para planejar o país? É o de 2020 ou de 2022? Porque o de 2021 com certeza não é, estamos no meio do turbilhão da pandemia. Cadê a abertura de um país democrático, científico, onde quando se cria um caos você chama quem entende para discutir o que vamos fazer? Isso me angustia profundamente. O projeto de Censo não está pronto. Temos mais de 400 mil mortos no país, mais de 3 mil por dia, e isso tem que ser considerado em estatística.

Há um debate político de que a não realização do Censo interessaria ao governo Bolsonaro, por omitir dados da pandemia. Qual a sua opinião?

Isso é o Brasil de hoje: o Brasil vive com medo. A gente tem medo de não ter orçamento para fazer o Censo. A gente tem medo que exista uma pressão por desinformação. Considerando que o presidente já criticou a pesquisa de emprego várias vezes, considerando que tivemos problema de informação não só no IBGE, mas no Inpe, no Inep, na polêmica sobre divulgação de dados do Ministério da Saúde, não é impossível imaginar que exista esse desinteresse efetivamente. O Censo vai revelar um país com sequelas enormes, da pandemia, econômicas, de perda de emprego, de renda. E temos uma eleição em 2022. Mas vamos fazer estatística mal feita por causa do medo?

O Congresso seria o espaço para se debater essa questão?

Havia a Frente da Geografia, Estatística e Meio Ambiente. Atuou fortemente dentro do Congresso e garantiu a realização do censo agropecuário. O Congresso é fundamental. Essa frente morreu em 2019, com a nova gestão do IBGE, e foi ignorada. Se existisse essa frente, não sei se teriam cortado o orçamento do IBGE.