Richard Dawkins: ateísmo científico.

Cândido Portinari, Graciliano Ramos, Jean-Paul Sartre, José Saramago e John Lennon. Cada um à sua maneira, todos deram contribuições definitivas para suas áreas de conhecimento. Há, porém, outro fator comum: todos são (ou eram) ateus. Mas o que significa, afinal, ser ateu? Ao contrário do que pensa a maioria, dizer que o ateu é “aquele que não crê em Deus” não basta. Ateu é “aquele que crê que Deus não existe”. Ainda que sutil, a diferença é importante para esclarecer o que distingue ateísmo e agnosticismo: enquanto o agnóstico não acredita em nada – nem que Deus existe nem que não existe, deixando a questão em suspenso -, o ateu acredita na inexistência divina.

Como explica à PLANETA o filósofo francês André Comte-Sponville, autor do livro O Espírito do Ateísmo, não se pode falar dos ateus como um grupo homogêneo: “O ateísmo não é uma doutrina nem uma escola de pensamento. É uma crença. Não há nada que una os ateus, se não exatamente aquilo que os define: a crença de que Deus não existe.” Prova da diversidade de ideias é a patente falta de consenso entre os autores ateus em torno da questão mais elementar: o próprio termo “ateu”. O biólogo britânico Richard Dawkins, por exemplo, defende o uso do termo “iluminado” (bright, em inglês) em vez de ateu. Já o neurologista norte-americano Sam Harris entende que “ateu” é uma palavra carregada de valores pejorativos e, por isso, deve ser deixada de lado.

Junto com o escritor britânico Christopher Hitchens e o filósofo norte-americano Daniel Dennett, Dawkins e Harris formam “os quatro cavaleiros do ateísmo”, os expoentes de uma visão ácida sobre o papel da religião no mundo contemporâneo. Para o grupo, não basta entender o homem como protagonista de sua própria história e dar a Deus o status de criação humana. Trata-se de criticar e combater as religiões sob a perspectiva da ciência e da razão lógica, em uma posição que ficou conhecida como “novo ateísmo”. No espectro oposto, o francês Comte-Sponville defende um “ateísmo místico”, baseado na noção de que religião e espiritualidade são coisas diferentes e, portanto, é possível ser ateu e cultivar uma espiritualidade. Se tamanha diversidade de opiniões pode soar confusa, saiba que ela é apenas um reflexo da complexidade do tema em aberto há pelo menos três milênios.

Religião e prosperidade

Veja como a pergunta “A religião é parte importante do seu cotidiano?” é respondida em países pobres e ricos. Em Bangladesh, 99% dizem sim. Os países menos religiosos são Estônia, Suécia e Dinamarca. No Brasil, 87% são afirmativos.

Doze milhões de descrentes

Para possível desespero dos “cavaleiros” citados, a verdade é que a religião está longe de desaparecer. Em 2009, o instituto de pesquisas internacional Gallup fez a seguinte pergunta a adultos de 114 países: “A religião é parte importante do seu cotidiano?” O resultado mostrou que a religião continua tendo um papel relevante na vida dos indivíduos: a proporção média global de entrevistados que deram resposta positiva foi de 84%.

Apesar do crescimento do ateísmo à medida que as sociedades se tornam mais ricas, a religião não está ameaçada de desaparecer.

Ainda que o Brasil tenha ficado em 53º lugar no ranking – posição mediana, longe de extremos -, seu resultado foi acima da média global: 87% responderam afirmativamente. Mesmo assim, as pesquisas nacionais mostram que, nos últimos anos, o número dos “sem-religião” tem crescido no país. Na verdade, a metodologia do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) não contempla a existência de ateus. A categoria dos “sem-religião” do Censo não é a mesma coisa, pois inclui agnósticos e os que creem em algo, mas não têm religião definida, como os adeptos do sincretismo.

Segundo o Censo Demográfico 2000, os semreligião, no Brasil, somam em torno de 12,5 milhões, o que representa 7,4% do total de quase 170 milhões de habitantes. Destes, calcula-se que cerca de 2% sejam ateus convictos. De acordo com dados de censos anteriores, foi na década de 1980 que o número de pessoas sem religião deu um salto. Até os anos 1970, o percentual não chegava a 1% da população. Nos anos 1980, atingiu 1,6% e, dez anos depois, pulou para 4,8%, chegando aos citados 7,4% em 2000.

Enquanto os resultados do Censo 2010 não são informados, pesquisas recentes dão pistas do atual cenário religioso do país. Divulgada em agosto deste ano, a Pesquisa de Orçamento Familiar 2008-2009 (POF), também do IBGE, mostrou um crescimento no número dos sem-religião, que passou de 5,1%, em 2003, para 6,7%, em 2009, o que representa cerca de 13 milhões de pessoas.

Com base na análise dos resultados dos Censos 1991 a 2000 e das POFs 2003 e 2009, o Centro de Políticas Sociais da Fundação Getulio Vargas (CPS/FGV) organizou o documento Novo mapa das religiões. Segundo o estudo, ao longo desses anos, nenhuma variável socioeconômica sofreu tanta alteração quanto a composição religiosa da população brasileira. Entre as principais mudanças, destacam-se a tendência de queda no número de adeptos do catolicismo e o crescimento da proporção de evangélicos e dos sem-religião na população.

Como aponta o estudo da FGV, dados da POF 2009 mostram que a religiosidade é menor nos extremos do espectro educacional, o que reitera a ideia de que os sem-religião são um grupo diverso: enquanto 7,27% não têm instrução ou estudaram no máximo 3 anos, outros 7,46% estudaram 12 anos ou mais. Destes, chama atenção a relevante presença de pessoas com mestrado e doutorado (17,40%). No que se refere à distribuição entre classes econômicas, a maioria dos semreligião pertence à classe E (7,72%), com presença relevante na classe AB (6,91%), repetindo os resultados da POF 2003. Segundo o estudo, na faixa econômica mais alta, os entrevistados se denominam agnósticos.

Mensagens da Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos (Atea): anúncios publicitários divulgados em Curitiba e no Rio de Janeiro combatem preconceitos.

Intolerância

A intolerância que ainda existe em relação aos que não creem também pode ser medida por números. Em 2008, uma pesquisa realizada pela Fundação Perseu Abramo, em parceria com o Instituto Rosa Luxemburgo, mostrou que os ateus formam a parcela da população com o maior índice de rejeição (42%), superando grupos estigmatizados como usuários de drogas (41%) e ex-presidiários (21%). Em 2007, uma pesquisa realizada pela rede CNT/Sensus sondou o comportamento dos brasileiros na hora do voto para presidente da República. Só 13% disseram que votariam em um candidato ateu, também a maior rejeição entre os candidatos hipotéticos pesquisados (homossexual, negro ou mulher).

Na imagem abaixo, o selo norte-americano (estampado no verso da nota de 1 dólar) mostra o Olho da Providência e anuncia, em latim: “Ele aprova nosso empreendimento

A tendência parece ser global. Em junho deste ano, o Gallup ouviu norte- americanos a respeito das intenções de voto às eleições presidenciais de 2012. Entre candidatos com características diversas (negro, mulher, hispânico, homossexual e diferentes religiões), o ateu teve a menor chance de vitória, com 49% de respostas negativas à possibilidade de voto. Existem indícios históricos desse comportamento: há quem diga que, em 1985, quando o então candidato à prefeitura de São Paulo Fernando Henrique Cardoso foi questionado pelo jornalista Boris Casoy se era ou não ateu, sua hesitação na resposta foi crucial para a derrota que se seguiu nas urnas.

Na opinião de Comte-Sponville, o que parece estar por trás desses impressionantes níveis de rejeição é a associação que ainda se faz entre ausência de religião e ausência de valores éticos e morais: “Talvez as pessoas confundam religião e moralidade, o que é obviamente um erro”, diz.

Preconceito contra ateus

Pesquisa sobre a disposição do voto segundo características pessoais dos candidatos nos EUA mostra os ateus como o grupo mais discriminado (49% de rejeição).

fonte: Gallup, intenção de voto em pessoas com características diversas para o cargo de presidente – Estados Unidos , 2011

 

Comte-Sponville: religiosidade não significa moralidade.

Exemplo prático disso são as declarações feitas pelo apresentador José Luiz Datena no programa Brasil Urgente, da Rede Bandeirantes de Televisão, em 27 de julho de 2010, ao discutir, ao vivo, dois crimes bárbaros que estavam sendo mostrados pela reportagem: “Esses crimes só podem ter uma explicação: ausência de Deus no coração. […] O sujeito que é ateu, na minha modesta opinião, não tem limites. É por isso que a gente tem esses crimes aí.” Ao longo de sua fala, Datena pontuou que não se tratava de uma generalização, mas pediu que fosse feita uma enquete com a pergunta “Você acredita em Deus?” para “provar que o bem é maioria”.

 

Sottomaior, Spínola e Palazzuoli fundaram a Atea para defender ateus.

A repercussão não foi exatamente a que o apresentador esperava. Em dezembro de 2010, o Ministério Público Federal ajuizou ação civil pública para que a Rede Bandeirantes se retratasse publicamente pelas colocações do apresentador. Quem também tomou providências foi a Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos (Atea), que requereu uma investigação criminal na Delegacia de Crimes de Racismo e Discriminação.

Afinal, foi para combater o preconceito e defender os direitos de ateus e agnósticos que a organização foi criada, em 2008, por Daniel Sottomaior, Alfredo Spínola e Mauricio Palazzuoli. Como estratégia de ação, a Atea denuncia casos de intolerância por meio de seu site – www.atea.org.br – e do blog Ateus Atentos – ateusatentos. blogspot.com – e, quando necessário, leva à Justiça os responsáveis, como fez com Datena. Segundo Sottomaior, porém, a lei é frágil: “A legislação atual prevê punição específica no caso de preconceito religioso, mas, se você é ateu, essa lei não o protege, já que ateísmo não é religião. A própria lei de proteção dos religiosos é um instrumento de discriminação contra ateus”, avalia.

Com o ateísmo se tornando comum, as pessoas começam a perceber que os ateus não são menos virtuosos que os outros.

Outra forma de atuação da Atea são as campanhas educativas. Em julho deste ano, a organização distribuiu oito outdoors em Porto Alegre (RS) com frases incisivas, como “Religião não define caráter”. A iniciativa, que durou um mês, deve seguir para Curitiba (PR) e Rio de Janeiro (RJ). Hoje, com três mil associados, a Atea procura estimular os ateus a “sair do armário” e organizar-se para defender seus direitos, assim como fazem os grupos religiosos. “Com o ateísmo se tornando comum, as pessoas começam a perceber que os ateus não são menos virtuosos que os outros”, avalia André Comte-Sponville. Como escreveu o filósofo em O Espírito do Ateísmo: “A religião é um direito. A irreligião também.”

Ética sem mistério

Um dos debates mais ricos sobre religião e ateísmo está no livro Em Que Creem os Que Não Creem? (Record, 1999) em que o cardeal italiano Carlo Maria Martini, ex-reitor da Universidade Gregoriana de Roma, e o filósofo Umberto Eco, ex-professor da Universidade de Bolonha, dialogam por meio de cartas. A discussão aborda temas como o livre-arbítrio e os limites entre Igreja e Estado. Enquanto Eco revela-se conhecedor dos evangelhos e elogia a contribuição das religiões para a nossa cultura, Martini tenta aproximar os dogmas cristãos das questões terrenas e reconhece como um “capítulo doloroso” o uso de violência pela Igreja para impor a verdade da sua fé em dados momentos históricos.

Para o cardeal, não cabe à religião satisfazer expectativas, mas sim celebrar mistérios. “A Igreja reconhece ainda não ter alcançado a plena compreensão dos mistérios que vive e celebra, mas olha com confiança para um futuro que lhe permitirá viver o cumprimento das promessas de Deus”, afirma.

Eco revela-se mais agnóstico do que ateu. “Ateu é uma figura cuja psicologia me escapa, porque não vejo como é possível não acreditar em Deus e considerar que não se pode comprovar Sua existência, e depois acreditar firmemente na inexistência de Deus, pensando poder prová-Lo”, diz.

Apesar da admiração mútua dos debatedores, as divergências permanecem. Martini, por exemplo, tem dificuldade de compreender o que move os ateus em direção à ética, já que, para ele, só há razão verdadeira em um Mistério transcendente. “Onde o leigo encontra a luz do bem?”, pergunta.

A resposta está “nas relações interpessoais que definem a humanidade”, como amor, respeito à integridade do outro e sentido absoluto de dever, afirma Eco. Tais valores inspiram uma “transcendência laica” baseada no reconhecimento natural dos direitos democráticos. “A dimensão ética começa quando entra em cena o outro. O olhar do outro é que nos define e nos forma”, diz o escritor.