A médica e pastora de Houston Stella Immanuel – descrita como “espetacular” por Donald Trump por sua promoção de afirmações infundadas sobre o medicamento antimalária hidroxicloroquina como uma “cura” para a covid-19 – tem alguns outros pontos de vista bem pouco convencionais

Além de acreditar que os cientistas estão trabalhando em uma vacina para tornar as pessoas menos religiosas e que o governo dos Estados Unidos é dirigido por criaturas reptilianas, Immanuel, líder de uma igreja cristã chamada Ministros da Montanha do Fogo (MFM, na sigla em inglês), também acredita que o sexo com demônios causa aborto espontâneo, impotência, cistos e endometriose, entre outras doenças.

Isso a expôs ao ridículo. Mas, como um estudioso do cristianismo primitivo, estou ciente de que a crença de que demônios – ou anjos caídos – regularmente fazem sexo com humanos está profundamente enraizada nas tradições judaica e cristã.

Sexo demoníaco

O primeiro relato de sexo demoníaco nas tradições judaicas e cristãs vem do Livro do Gênesis, que detalha as origens do mundo e a história inicial da humanidade. O Gênesis diz que, antes do dilúvio de Noé, os anjos caídos se acasalaram com mulheres para produzir uma raça de gigantes.

A breve menção de anjos acasalando com mulheres humanas contém poucos detalhes. Coube a escritores posteriores preencher as lacunas.

No terceiro século a.C., o Livro dos Vigilantes, uma visão apocalíptica escrita em nome de um misterioso personagem chamado Enoque mencionado no Gênesis, expandiu essa história intrigante. Nessa versão, os anjos, ou “Vigilantes”, não apenas fazem sexo com mulheres e gigantes de nascimento, mas também ensinam aos humanos a magia, as artes do luxo e o conhecimento da astrologia. Esse conhecimento é comumente associado no mundo antigo ao avanço da civilização humana.

O Livro dos Vigilantes sugere que os anjos caídos são a fonte da civilização humana. Como mostrou a erudita Annette Yoshiko Reed, o Livro dos Vigilantes teve uma longa vida nas comunidades judaica e cristã primitiva até a Idade Média. Suas descrições de anjos caídos foram muito influentes.

A história é citada na epístola canônica de Judas. Judas cita o Livro dos Vigilantes em um ataque a adversários percebidos que ele associa ao conhecimento demoníaco.

“O Súcubo”, escultura de Auguste Rodin no acervo do Museu Soumaya, na Cidade do México. Súcubo é a versão feminina do íncubo. Crédito: Museo Soumaya/Wikimedia

Fascínio medieval

Os cristãos do século 2 d.C., como o influente teólogo Tertuliano de Cartago, trataram o texto como escritura, embora ele agora seja considerado escritura apenas por algumas comunidades cristãs ortodoxas.

Tertuliano reconta a história dos Vigilantes e suas artes demoníacas como uma forma de desencorajar as cristãs de usar joias, maquiagem ou roupas caras. Vestir-se com qualquer coisa que não seja roupas simples, para Tertuliano, significa que alguém está sob a influência de demônios.

Cristãos como Tertuliano passaram a ver demônios por trás de quase todos os aspectos da cultura e religião antigas.

Muitos cristãos justificaram a abstenção dos aspectos cotidianos da vida romana antiga, desde consumir carne até usar maquiagem e joias, argumentando que tais práticas eram demoníacas.

O fascínio cristão por demônios fazendo sexo com humanos se desenvolveu significativamente no mundo medieval. A historiadora Eleanor Janega mostrou recentemente que foi no período medieval que as crenças sobre sexo noturno com demônio – as ecoadas por Immanuel hoje – tornaram-se comuns.

Por exemplo, conta-se que o lendário mago Merlin, dos contos do rei Artur, teria sido gerado por um íncubo, um demônio masculino.

Libertação demoníaca

Desde que se preocuparam com os demônios, os cristãos também pensaram em como se proteger deles.

A primeira biografia de Jesus, o Evangelho de Marcos, escrito por volta de 70 d.C., apresenta Jesus como um pregador carismático que tanto cura pessoas quanto expulsa demônios. Em uma das primeiras cenas desse evangelho, Jesus expulsa um espírito impuro de um homem na sinagoga de Cafarnaum.

Em uma de suas epístolas aos coríntios, o apóstolo Paulo argumentou que as mulheres podiam se proteger de ser estupradas por demônios usando véus sobre a cabeça.

Os cristãos também se voltaram para as antigas tradições de magia e objetos mágicos, como amuletos, para ajudar a evitar perigos espirituais.

Cristianismo evangélico e pentecostalismo

No despertar do Iluminismo, os cristãos europeus envolveram-se profundamente em debates sobre milagres, incluindo aqueles relacionados à existência e expulsão de demônios.

Para muitos, o surgimento da ciência moderna questionou tais crenças. No final do século 19, os cristãos que procuraram manter a fé em demônios e milagres encontraram refúgio em dois desdobramentos separados, mas interligados.

Uma grande quantidade de evangélicos americanos se voltou para uma nova teoria chamada “dispensacionalismo” para ajudá-los a entender como ler a Bíblia. Teólogos dispensacionalistas argumentaram que a Bíblia foi um livro codificado por Deus com um projeto para a história humana, passado, presente e futuro.

Nessa teoria, a história humana foi dividida em diferentes períodos de tempo, “dispensações”, nas quais Deus agiu de maneiras particulares. Os milagres foram atribuídos a dispensações anteriores e só voltariam como sinais do fim do mundo.

“Os Quatro Cavaleiros do Apocalipse”, pintura de 1887 de Viktor Vasnetsov (1848-1926). Para os dispensacionalistas, o fim do mundo está próximo. Crédito: Wikimedia

Desconfiança

Para os dispensacionalistas, a Bíblia profetizou que o fim do mundo estava próximo. Eles argumentaram que o fim ocorreria por meio do trabalho de forças demoníacas operando por meio de instituições humanas. Como resultado, os dispensacionalistas costumam ser bastante desconfiados e propensos a pensamentos conspiratórios. Por exemplo, muitos acreditam que as Nações Unidas (ONU) fazem parte de uma conspiração para criar um governo mundial governado pelo vindouro Anticristo.

Essa desconfiança ajuda a explicar por que cristãos como Immanuel podem acreditar que criaturas reptilianas trabalham no governo dos EUA ou que os médicos estão trabalhando para criar uma vacina que torne as pessoas menos religiosas.

Enquanto isso, o final do século 19 também viu o surgimento do movimento pentecostal, o segmento de crescimento mais rápido do cristianismo no mundo. O pentecostalismo apresentava um interesse renovado na obra do Espírito Santo e sua manifestação em novos sinais e maravilhas, desde curas milagrosas até palavras extáticas.

Como o estudioso André Gagné escreveu, Immanuel tem laços profundos com uma rede pentecostal de destaque na Nigéria, o MFM. Essa rede foi fundada em 1989 em Lagos por Daniel Kolawole Olukoya, geneticista que virou pregador popular. A igreja de Olukoya tornou-se uma rede transnacional, com ramificações nos EUA e na Europa.

Como muitos pentecostais do hemisfério sul, os adeptos do MFM acreditam que as forças espirituais podem ser a causa de muitas aflições diferentes, incluindo divórcio e pobreza.

Libertação do cristianismo

Para cristãos como Immanuel, os espíritos representam uma ameaça aos humanos, tanto espiritual quanto fisicamente.

Em seu livro recente Saving Sex, a estudiosa de religião Amy DeRogatis mostra como as crenças sobre a “guerra espiritual” tornaram-se cada vez mais comuns entre os cristãos em meados do século passado.

Esses cristãos afirmavam ter o conhecimento e as habilidades necessárias para “libertar” os humanos dos laços da possessão demoníaca, que pode incluir demônios alojados no DNA. Para esses cristãos, a guerra espiritual era uma batalha contra um perigoso conjunto de inimigos demoníacos que atacavam tanto o corpo quanto a alma.

A crença de que demônios fazem sexo com humanos não é, portanto, uma aberração na história do cristianismo.

Pode ser tentador ver o apoio de Immanuel às teorias da conspiração como algo separado de suas afirmações de que os demônios causam doenças ginecológicas.

No entanto, como os demônios também foram associados à influência da cultura e da política, não surpreende que aqueles que acreditam neles possam desconfiar do governo, escolas e outras coisas que os descrentes possam considerar senso comum.

* Cavan W. Concannon é professor associado de Religião no Dornsife College of Letters, Arts and Sciences da Universidade do Sul da Califórnia (EUA).

** Este artigo foi republicado do site The Conversation sob uma licença Creative Commons. Leia o artigo original aqui.