O Cristalino, em Mato Grosso, corre paralelo ao Araguaia e suas águas calmas e transparentes são perfeitas para marinheiros de primeira viagem em matéria de caiaque.

Em Luiz Alves, à beira do Rio Araguaia, nos confins de Goiás, um verdadeiro mercado persa nos aguardava na avenida beira-rio. Além da balbúrdia e das barraquinhas de ambulantes tradicionais, típicas das cidades ribeirinhas, ele tinha também um componente techno: a música ensurdecedora que saía dos porta-malas abertos de vários automóveis cujos ocupantes rodopiavam como dervixes, ao som do seu totem musical preferido. Tentávamos atravessar aquela babel quando uma caminhonete vermelha dobrou a esquina e se dirigiu ao centro do mercado onde, sem a menor cerimônia, estacionou. Um halo de néon azul-arroxeado emanava de seu interior. Todas as suas portas se abriram ao mesmo tempo, enquanto, por obra e graça de alguma mágica hidráulica, a cobertura da carroceria se ergueu até encostar na cabine. Surgiram 5 mil alto-falantes; talvez até mais. Em poucos segundos, um tsunami sonoro emergiu desse carro de som e varreu a pequena Luiz Alves. Para o nosso grupo, que deixava o mundo urbano em busca de aventuras num rio selvagem, essa recepção sem dúvida simbolizou um ritual de passagem.

A primeira balsa, acima, atravessa o Rio Araguaia.

Chegamos a Luiz Alves depois de 50 quilômetros por estrada de terra, e após uma guinada a oeste nas imediações de São Miguel do Araguaia. Antes disso, tínhamos percorrido outros 500 quilômetros desde Goiânia, através de uma rodovia cujo leito asfaltado, lá pelas alturas de Mozarlândia, tinha mais buracos que a superfície da Lua. Nosso destino era o Rio Cristalino, em Mato Grosso, que corre quase paralelo ao Araguaia, até desembocar nele, na altura da Ilha do Bananal. O plano era descer o Cristalino de caiaque. Uma remada de seis dias, por quase 130 quilômetros, até sua desembocadura. Oito remadores, em caiaques individuais, mais quatro pessoas em duas voadeiras – como são chamadas as canoas motorizadas no interior do Brasil. Elas transportariam toda a comida, barracas e a tralha necessária para os acampamentos diários.

A segunda balsa, acima, cruza o Rio Cristalino. No meio, o preparo do tucunaré, e por último uma cena do acampamento à beira-rio.

No dia seguinte, a pouca distância de Luiz Alves, um corte profundo na barranca do rio nos levou à pequena balsa que faz a travessia do Araguaia. “Navegações Kim”, dizia a placa sob a pequena cabine da balsa. Sob orientação do comandante, demos duro para tracionar os veículos na areia fofa até conseguir vencer o degrau na proa da embarcação, cujo motor rugia no esforço para mantê-la posicionada contra o barranco. Cabos de atracação? Nenhum. Embarcados, por fim, uma foto registrava o início da aventura.

Durante a travessia, o grande e manso Araguaia reluzia. Do lado de lá, Mato Grosso, Estado que já representou um mítico Eldorado para pescadores e caçadores. Lembrei-me de meu tio Dilço, caçador das antigas, que nunca matava uma ave no chão. Ele contava histórias incríveis de caçadas de onça e encontros com índios xavantes na floresta, além da existência de peixes imensos – jaús e piraíbas capazes de arrastar um nadador desavisado para as profundezas do rio. Eram histórias contadas num estilo Hemingway, que deixavam a meninada excitada. Hoje, poderiam levar ao desmaio um ecologista mais sensível. Histórias de um tempo que se foi.

De volta ao presente, do outro lado do rio, um buraco na mata mostrava a direção a seguir. Penetramos numa trilha sinuosa, traçada na terra batida. Sorte de quem sai na frente, pois, para os que vão atrás, a poeira incomoda um bocado. A solução foi ligar o ar-condicionado, essa maravilha dos tempos modernos, com o ventilador ao máximo e as janelas fechadas. Cria-se uma pressão positiva que diminui sensivelmente a entrada de pó. Mas é preciso estar atento ao indicador de temperatura: sementes e pedaços de folhas podem rapidamente obstruir a frente do radiador, diminuindo a refrigeração do motor. E um motor fundido, num lugar desses… Por todo o trecho, áreas de floresta e de savana se alternavam. Quatro horas, para percorrer 50 quilômetros.

Daniel passa em revista os caiaques. Abaixo, um tucunaré briga para se livrar do anzol, mas vai parar na churrasqueira improvisada.

Ao chegarmos às margens do Cristalino, vimos que estávamos num outro Brasil. Ali também havia uma balsa… mas sem motores. Apenas um pranchão puxado com cabos de aço pela força dos braços e a boa vontade dos passageiros que embarcavam. As duas voadeiras, carregadas com nossos equipamentos, rapidamente estavam no rio. Logo partiram, sob o comando de Fernando e Rubão, incumbidos de montar o acampamento. Despachamos os automóveis de volta e arrastamos os caiaques para a água. A jornada começava.

Dois Daniéis, um Araí, mais Rafael, Danilo, José Marcos e André, além de Juarez e Bosco, que vieram só para pescar. E eu, claro. Taí, apresentada, a turma toda. Nossos caiaques são do tipo aberto, o que permite flexionar as pernas e dá maior mobilidade aos remadores. Bem diferentes daqueles em que o remador vai “ensacado”. Além disso, têm um pequeno compartimento para bagagem atrás do tripulante onde vai o salva-vidas, porque ninguém aguenta remar muito tempo vestido com aquilo. E, mais importante, um compartimento onde se encaixa, à perfeição, a empunhadura da imprescindível vara de pescar. Assim, ela está sempre à mão. Se bem que mãos, remo e vara às vezes provoquem confusões que podem resultar num banho para o desajeitado. Pretensiosos, trouxemos comida apenas para os jantares. Almoço, só com peixe fresco fisgado ao longo da primeira parte do trecho diário. Senão, seria fome certa.

Acima, um momento de distração e o anzol entra na carne. Abaixo, um encontro no meio do rio.

A turma toda tinha prática no remo, menos eu e Daniel, meu filho, marinheiros de primeiríssima viagem em matéria de caiaque. Para baixo todo santo ajuda, eu pensava, animado, até que o outro Daniel, logo na saída, informou que a corrente do Cristalino mal chega a mil metros por hora. Era o próprio rio da preguiça. Além disso, percebi logo que, se parasse de remar, o caiaque insistia em rumar para uma das margens e lá se encostar. No primeiro dia, isso não me incomodou. Afinal, tínhamos quase a tarde toda para percorrer apenas sete quilômetros, até o primeiro acampamento.

Naquela noite, um círculo de cadeiras, ao redor de uma fogueira, foi nossa sala de estar. Sob o céu estrelado, acomodados numa nesga de praia entre a mata e o rio, filosofamos até altas horas. Mas vale notar que essa tranquilidade só aconteceu após um sem-número de insetos voadores ter cessado suas atividades, algum tempo depois do pôr do sol. Pelos mosquitinhospólvora, até esquadrões de imensas mutucas, fomos impiedosamente sugados.

No dia seguinte, subi no meu caiaque e saí bem cedo, muito antes dos outros. De forma alguma queria ficar horas para trás, sem falar nas paradas que queria fazer para tirar fotografias. No lusco-fusco da madrugada, o rio parecia fumegar – suas águas, nessas horas, são mais quentes que o ar da floresta. Meia hora depois, já distante do acampamento, o ambiente era idílico. O caiaque navegava silencioso. O som suave das remadas ritmadas pouco interferia na atmosfera reinante. Centenas de aves nas copas das árvores faziam muito alarido. Algumas capivaras pastavam na beira do rio, e uma sensação de relax prazeroso foi se apoderando de mim. Parecerei presunçoso se disser que tive vislumbres daquilo que os estudiosos da mente chamam de “sentimento oceânico”? Ele ocorre quando, por um breve momento, antes de a consciência fatalmente interferir, sentimos uma profunda conexão com o todo. Sentia-me no paraíso, até que o guinchar de um casal de ariranhas me tirou desse quase transe.

Um bom tempo depois ouvi o som das voadeiras. Não demorou para que Fernandão, provocando marolas que quase emborcaram o caiaque, passasse ao meu lado. “São mais uns 15 quilômetros até o novo acampamento”, gritou de passagem. “Não são tantos”, pensei, e resolvi pescar. Verdade que, nessa altura, a fome já reduzira o “sentimento oceânico” a um oco no estômago. Estávamos todos equipados para pegar tucunaré, peixe que normalmente se pesca com isca artificial – um peixinho falso, rodeado de anzóis, chamado garateia. Lança-se a isca para bem perto da margem e recolhe-se a linha enrolando a carretilha bem devagar. Muito agressivo, o tucunaré não suporta a presença daquele abusado em seu território. Voraz, ele praticamente se fisga sozinho. Depois, é uma briga danada até embarcá-lo. E é preciso ser rápido, senão o corredor polonês das piranhas deixa só a cabeça pendurada no anzol.

Fui alcançado pelo grupo. Pouco mais abaixo, Rafael descobrira uma lagoa ligada ao rio, e ela se revelou uma verdadeira mina de tucunarés. Uns dez peixes vieram logo para o nosso samburá. Despensa cheia, hora do almoço. Numa prainha, enquanto uns limpavam e passavam sal temperado dentro e fora dos peixes, outros saíram para catar lenha seca na mata e cortar alguns ramos verdes para a construção da churrasqueira. Pronta a armação, bastou colocar os peixes sobre ela, sem retirar as escamas. Quando estavam bem tostados por fora, foi só puxar a pele para encontrar uma carne branca, suculenta e perfumada. Comemos de joelhos, como se costuma dizer – afinal, não havia cadeiras.

Fernandão é também nosso cozinheiro. Boa gente, mas queixo duro, não leva desaforo para casa – é homem de resposta pronta. Suas réplicas são saborosas e pesadas, como sua comida. Infelizmente, todas impublicáveis. Num acampamento, é capaz de cozinhar até onça – se bem que não se disponha a pegá-las. Naquela noite, o jantar com que nos esperou foi ótimo: carne, macarrão e batata, tudo bem condimentado e com uma consistência bem mais substancial que o almoço.

Dor. Acordei todo dolorido. Faz parte desse tipo de viagem. Depois de remar um dia inteiro, nada mais previsível. Sinto-me como um passarinhão que migrou do Canadá à Patagônia num voo sem escalas. É um custo levantar os braços. Os músculos laterais do tórax parecem dois pontaletes fincados no abdome. Sei que, quando começar a remar, vai melhorar; mas, só de pensar na fase de transição, desanimo. Será cruel. Engulo dois ovos duros e forço algumas rosquinhas goela abaixo. Tomo um bom copo de café – bebida que ultimamente é indicada como boa para tudo.

Logo depois, enquanto puxava o barco pelas águas rasas da margem, arrastava os pés no fundo arenoso. Mais do que pelo cansaço, fazia isso para afugentar arraias. Pisar numa delas é levar ferroada certa e sofrer uma dor quase insuportável. Se temos um conforto que não desejo experimentar é o kit de primeiros socorros do médico Daniel, que inclui alguns anestésicos e um bisturi que ele afia nas horas vagas. Ontem, precisou utilizá-lo para fazer uma pequena cirurgia no polegar esquerdo de Danilo.

Acima, uma área de alagado com muita vegetação. É o esconderijo perfeito para cardumes inteiros de peixes grandes que ali permanecem confinados. Abaixo, é preciso cuidado ao caminhar nas águas rasas: arraias com grandes ferrões podem estar à espreita. Ao lado, um tuiuiú alça voo e assinala o fim da viagem.

 

Ele enfrentara um tucunaré tão grande que, no meio do embate, acabou fisgado. Outro cuidado necessário por aqui é com o candiru, pequeno peixe comum nos rios da bacia amazônica, semelhante a uma tênia. Ele tem o desagradável hábito de penetrar em orifícios alheios, principalmente na uretra de quem urina nu dentro d’água – depois, não sai mais. Só com uma cirurgia cuja simples menção faz tremer o mais empedernido dos machões. Apesar de alguns dizerem que isso é lenda, convenhamos: sob tal ameaça, quem se anima a tirar o calção?

Perto da hora do almoço, estávamos preocupados: havíamos fisgado apenas quatro peixes. De repente, num relance, vi um tucunaré passar rápido rio acima, perto da margem. Numa posição meio desajeitada, voltei-me para trás, lancei rápido a isca e, junto dela, foi-se a vara. Na tentativa de recuperar o caniço, perdi o equilíbrio e virei o caiaque. Daniel, que estava perto, disse nunca ter visto alguém retornar tão rápido à segurança do barco. Pudera, com a quantidade de piranhas, jacarés e candirus que me vieram à mente, bati os pés no fundo do rio e voltei como um míssil. Além do susto, tive de me contentar com apenas meio peixe, a ração de cada um.

Todo aventureiro que se preza tem seu Eldorado. O nosso era uma lagoa abarrotada de peixes, separada do rio pela vazante de inverno, que havíamos descoberto numa foto recente do Google. O significado da imagem era claro: tratava- se de muitos exemplares de peixes enormes confinados num espaço restrito. Assim, depois do almoço, viramos à esquerda num braço do rio e, após uns dois quilômetros contra a corrente, encontramos uma área de alagados com bastante vegetação. Como não dava para remar, tivemos de descer dos caiaques e puxá-los, às vezes com a água pela cintura. Claro que nos preocupávamos com a possibilidade de encontrar jacarés ou, até mesmo, uma enorme sucuri, mas o tamanho do prêmio nos fazia temerários.

A certa altura, chegamos a uma parte seca onde não houve outro meio senão arrastar os caiaques por terra. Por fim, suados e animados, achamos, em plena selva, a lagoa: “Mãos à obra. Vamos pegar o rei dos tucunarés!” E assim foi, por mais de uma hora, sem fisgar nem mesmo um único lambari! O tesouro já havia sido saqueado. Não sobrara nada. Desanimados, lá vamos nós de volta. E não é que, do outro lado, encontramos dois pescadores numa canoinha e um deles nos disse, candidamente: “Isso aí não é lagoa fechada não, moço. Lá no fundo tem uma passagenzinha escondida no mato que vai dar na outra curva do rio…” Decepção total. E pior ainda: devido ao tempo perdido, tivemos de optar por cortar caminho, arrastar os caiaques novamente e procurar a tal “passagenzinha”.

Nunca o acampamento pareceu tão distante. Em compensação, a euforia pós-exercício, desse que foi o mais longo dos dias, junto da fome e do extremo cansaço, fez da chegada ao acampamento uma festa que avançou noite adentro. O jantar preparado por Fernandão correspondeu às nossas necessidades – tinha “sustância”, como diz o caipira.

Dois dias depois, o sol ainda estava atrás da copa das árvores quando começamos a perceber uma mudança no rio, que ficava cada vez mais largo, ao mesmo tempo que a correnteza parecia quase cessar. Era a força do Araguaia, já próximo, cujas águas represavam seu afluente. A partir dali, o Cristalino, contido, forma um sem-número de alagados e lagoas unidas a ele por corrichos, como são chamados os canais que a tudo interligam. Uma região muito bonita, onde árvores e água se misturam em cores exuberantes. No cair do dia, prestes a chegar ao Araguaia, ponto final de nossa aventura, passamos por um bando de tuiuiús numa praia. Ao pousar na areia eles se acomodam dobrando parte de suas longas pernas. Cabeça negra, colar vermelho no pescoço e plumagem branca, pareciam senhores vestidos de summer jacket. Tinham um ar zombeteiro. Do jeito deles, nos davam adeus.