Sob impacto da grave crise humanitária causada por garimpo, indígenas ainda sofrem com desnutrição infantil e malária. Atendimento do governo federal continua deficiente. Lideranças acusam falta de apoio de militares.A situação é tensa em um dos polos mais afetados pela crise humanitária causada pelo garimpo na Terra Indígena (TI) Yanomami, em Surucucu. Embora a emergência tenha entrado para a agenda do governo federal desde janeiro, a força-tarefa voltada para o atendimento à saúde e distribuição de alimentos ainda é insuficiente.

“A situação continua crítica. A equipe médica não conseguiu chegar em todas as comunidades. Tem muita coisa para ser resolvida, a ajuda ainda está no começo”, afirma Ivo Macuxi, assessor jurídico do Conselho Indígena de Roraima (CIR), à DW.

A desnutrição infantil segue alarmante. Dados obtidos pela DW e confirmados pelo CIR indicam que a taxa de mortalidade de crianças menores de 5 anos foi de 1,8 por dia em janeiro – o que totaliza 56 vítimas naquele mês.

“O cenário é mais grave do que se imaginava. A fome é um problema sério, e a malária se alastrou muito. Houve também um surto recente de covid-19”, comenta Ricardo Affonso Ferreira, presidente e fundador da Expedicionários da Saúde (EDS).

Lideranças acusam falta de apoio das Forças Armadas

Formada por voluntários e financiada por doações, a ONG levanta um hospital de campanha no território para amenizar a crise humanitária. O atendimento aos indígenas, que deve começar em meados de abril, poderia estar a pleno vapor se não fosse a falta de apoio das Forças Armadas, dizem lideranças ouvidas pela DW.

“O Exército não conseguiu concluir a revitalização da pista ainda. Se ela estivesse pronta, poderia receber aeronaves grandes e isso ajudaria muito no atendimento aos yanomami, pois chegariam mais suprimentos”, critica Macuxi, se referindo à obra de ampliação do aeródromo de Surucucu.

A cerca de 300 quilômetros da capital Boa Vista, a pista é crucial para a chegada de aviões de carga a Surucucu, que só é acessível por via aérea. O polo também concentra a base do 4º Pelotão de Fronteira do Exército Brasileiro.

Para o advogado indígena, a lentidão é proposital. “A gente acredita que eles não querem concluir mesmo, para que o Estado não chegue lá para cuidar do nosso povo e expulsar os garimpeiros. A gente sabe que o Exército apoiava Bolsonaro, e parece que estão boicotando mesmo a gente”, afirma.

Questionado, o Ministério da Defesa não se pronunciou até o fechamento desta reportagem.

Emergência de saúde

O hospital de campanha do EDS é visto como um reforço para estancar a crise humanitária. Há pelo menos seis semanas, equipes trabalham no preparo da infraestrutura no terreno, no tratamento de esgoto e água, na reforma de uma antiga enfermaria – construída pelo próprio EDS em 2013.

O ambiente onde os pacientes serão atendidos, composto por uma estrutura de alumínio e lona de eficiência térmica, é de montagem rápida e simples, afirma a ONG. Quando estiver pronto, ele terá sala de emergência, laboratório de análises e internet para dar suporte à telemedicina.

“Vamos com equipes nossas no começo. A nossa ideia é que o Estado depois assuma as operações”, afirma Ferreira, acrescentando que as equipes de saúde terão sete profissionais que serão substituídos a cada dez dias.

O transporte dos equipamentos tem sido feito por aeronaves a serviço do Centro de Operações de Emergência, mobilizado em 26 de janeiro após a visita do presidente Lula ao território. “Nós atuamos de forma mais sistemática nos yanomami desde o começo de 2022. Sabíamos do que estava acontecendo. Mas estamos falando mais sobre a crise agora porque o presidente esteve lá e colocou a boca no trombone”, ressalta Ferreira.

Segundo o Ministério da Saúde, 14 profissionais da Força Nacional do Sistema Único de Saúde atuam neste momento na Casa de Saúde Indígena (Casai), em Boa Vista. É lá onde se recuperam 24 crianças que iniciaram tratamento após quadro de desnutrição.

Na TI Yanomami, a maior do Brasil, distribuída pelos estados de Roraima e Amazonas, 17 equipes trabalham desde janeiro distribuídas nos polos de Auaris, Palimiú, Surucucu, Waputha, Maloca Paapiú e Yarotobi. Segundo dados oficiais, 15,3 mil cestas de alimentos foram encaminhadas à população yanomami, 10,3 mil atendimentos foram feitos desde o início da operação de emergência, com distribuição de 250 mil unidades de medicamentos para malária.

O impacto destrutivo do garimpo

A doença infecciosa, transmitida na picada do mosquito anopheles, é tratada com cloroquina desde a década de 1930. A droga, apesar de demonstrada ineficácia contra covid-19, era defendida por Bolsonaro como “tratamento precoce” durante a pandemia. Como sequência, o medicamento faltou onde era mais necessário.

“A malária aumentou muito e houve falta de remédio por muito tempo”, diz Macuxi.

Ricardo Affonso Ferreira, médico do EDS, se diz assustado com o que presenciou na TI durante visita em fevereiro. “Os pais doentes de malária ficam na rede, com febre, e não têm condições de sair e trazer comida para as crianças”, argumenta Ferreira.

A doença entre os indígenas cresceu mais de 300% com a onda de invasão dos garimpeiros, agravada em 2019. Em janeiro último, a Hutukara Fundação Yanomami estimava a presença de 20 mil invasores no território em busca de ouro.

“Uma parte da população começou a trabalhar para os garimpeiros e passou a não cuidar mais das roças. De certa maneira, passaram a ser dependentes dos garimpeiros para se alimentar. Com a saída dos garimpeiros, o impacto inicial é de aumento da fome”, avalia Ferreira.

Ivo Macuxi confirma a situação, mas ressalta que as lideranças estão apurando quais comunidades se encontram em situação mais crítica.

Segurança para os indígenas e suas terras

Desde janeiro, uma operação do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), com apoio da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e da Força Nacional de Segurança Pública, atua para acabar com o garimpo no local. Para evitar confrontos, o governo federal estabeleceu o dia 6 de maio como prazo para saída voluntária dos invasores.

As equipes de fiscalização encontram resistência em algumas situações. Em pelo menos duas ocasiões, os agentes foram recebidos a tiros. Em fevereiro, uma base do Ibama foi atacada por criminosos armados na aldeia Palimiú.

“Ainda há muito a ser feito. Os garimpeiros resistem, existem áreas remotas ainda a serem alcançadas”, comenta Priscilla Oliveira, pesquisadora e ativista da Survival International, em entrevista à DW.

A ONG espera que a operação se prolongue pelo tempo necessário para retirada dos invasores e que não seja concluída em abril, como declarou recentemente o ministro da Justiça, Flávio Dino.

“Tem que durar o tempo necessário para remover todos os garimpeiros e proteger permanentemente os indígenas. É isso que estamos esperando deste novo governo, que haja uma resposta emergencial, e também uma resposta a longo prazo que esteja à altura da crise que está acontecendo”, justifica Oliveira.

Para Ivo Macuxi, do Conselho Indígena de Roraima, o plano de ação precisa ser consistente. “A gente espera a retirada de todos os garimpeiros e que o governo mantenha a proteção da terra indigena a médio e longo prazo, para que os invasores não voltem”, diz.