No mundo de trabalho e sobrevivência do passado, a estética adornava as festas, os espetáculos e as igrejas.

Nos tempos hipermodernos atuais, tudo o que consumimos está impregnado de emoções e de estética.

Gilles Lipovetsky é um dos maiores estudiosos do individualismo contemporâneo, autor de livros de referência sobre a cultura hipermoderna e a estética das emoções que domina o consumo, a publicidade, a moda, as tevês a cabo, as redes digitais, a Copa do Mundo e os festivais de rock.

Sua obra não examina o consumo pelo prisma negativo, mas não deixa de ratificar o que muitas gerações anunciaram antes: o homem não pode ser feliz só com dinheiro. Para Lipovetsky, o cenário hedonista e imediatista da cultura hipermoderna obscurece os valores do passado e provoca mais inquietação do que otimismo, na medida em que as diferenças entre ricos e pobres aumentam. Esse cenário está mais visível nos Estados Unidos, cuja cultura propagou as virtudes de um capitalismo com igualdade de oportunidades e liberdade durante muitas décadas. 

A modernidade é volátil, individualista e vertiginosa. Para onde vai o mundo hiperestetizado pelo consumo e pelas empresas ninguém sabe. “Mas é cedo para demonizar a realidade em que vivemos”, diz o filósofo. Em Paris, Lipovetsky fez questão de ressaltar à PLANETA que “a hipermodernidade está apenas no começo da sua história”. 

O dinheiro é fonte de felicidade?
Essa é uma questão clássica. A felicidade é cada vez mais estudada pelas ciências sociais e chegamos ao ponto de tentar medi-la. Tenho algumas dúvidas ao responder essa questão, porque ela pode mudar em minutos. Um simples telefonema pode acabar com o sentimento de felicidade. As pesquisas e a escala coletiva nos dão algumas respostas. Os países mais miseráveis sãos os que apresentam um índice de felicidade mais baixo. Imagino que um sem-teto não pode estar entre as pessoas mais felizes do mundo. Desse ponto de vista, o dinheiro contribui para a felicidade. Mas há um detalhe importante: as pesquisas mostram também que, a partir de um certo nível, o dinheiro que você ganha a mais não lhe faz ser mais feliz. Por exemplo, se você ganha US$ 50 mil por ano e de repente passa a ganhar mais dez por cento, você não será dez por cento mais feliz. O dinheiro traz felicidade quando nos faltam muitas coisas. 

Com as necessidades atendidas, a angústia diminuiu?
Se você não pode ter uma casa, ou um mínimo de conforto, é óbvio que isso pesa na possibilidade de ser feliz. Mas a partir do momento em que temos o essencial para viver, o dinheiro não traz mais felicidade. Porque a felicidade são as relações no trabalho, o relacionamento com as pessoas queridas, os amigos, a vida pessoal, e nada disso vem do dinheiro. Por outro lado, se Se você não pode ter uma casa, ou um mínimo de conforto, é óbvio que isso pesa na possibilidade de ser feliz. Mas a partir do momento em que temos o essencial para viver, o dinheiro não traz mais felicidade. Porque a felicidade são as relações no trabalho, o relacionamento com as pessoas queridas, os amigos, a vida pessoal, e nada disso vem do dinheiro. Por outro lado, seria precipitado dizer que “o dinheiro não tem nada a ver com a felicidade”, porque não é verdade. Sabemos, aqui na França e no Brasil, que existe um momento nessa sociedade de hiperconsumo em que os problemas da falta de dinheiro pesam de verdade, porque as pessoas precisam fazer contas para tudo: pagar a conta de luz, a escola dos filhos, economizar, etc.

Parece que o consumo domina.
Com certeza, não! O consumo não responde de maneira nenhuma às questões da vida, não resolve os problemas do trabalho e da sua vida pessoal. Podemos comprar um tablet para ver filmes, mas se assistirmos sozinhos é pouco provável que tenhamos uma vida muito feliz. A indústria de consumo tenta mostrar que objetos e viagens podem resolver todos os problemas, mas isso não é verdade e todos sabem. Se seus filhos estão com problemas na escola, o consumo não resolve absolutamente nada. As dimensões existenciais são muito mais importantes porque dizem respeito à nossa identidade. Temos exigências de expressão, de criação, afetivas e relacionais que não têm nada a ver com o consumo.

Em geral, os produtos hiperconsumidos são feitos em países pobres, onde a mão de obra é mais barata. O desenvolvimento è compatível com a ética?
Depende de como esse desenvolvimento acontece. Há perspectivas condenáveis, como, por exemplo, o trabalho infantil. Por outro lado, sem desenvolvimento podemos ter certeza de que todos os valoresdemocráticos e humanistas que reinvidicamos não serão respeitados. Sem desenvolvimento, haverá miséria, epidemias e estragos. Como alfabetizar as crianças? Não temos uma resposta definitiva. É fácil atacar o desenvovimento econômico, mas sem ele a vida humana vai à ruína. Graças ao desenvolvimento, os chineses ganharam sete ou oito anos de esperança de vida nos últimos 20 anos. A alfabetização, a melhoria de vida das mulheres, os avanços da medicina, tudo isso é importante. Evidentemente, há excessos. Os políticos existem para determinar que o desenvolvimento econômico não contradiga os valores humanistas.

Mas não é o que vemos no dia a dia.
Erros sempre acontecerão. Mas que sejam poucos. Eles, os políticos, podem corrigilos através de medidas de redistribuição de renda. Mas, de qualquer forma, o desenvolvimento é necessário. Veja o discurso dos bobos, o apelido dos bourgeois-bohèmes franceses, a camada urbanizada, de classe média ou média alta, que defende valores de esquerda como ecologia e terceiromundismo. Eles já têm tudo, mas repetem que “o desenvolvimento econômico é horrível porque devasta o planeta”. A observação não é falsa, mas a resposta é problemática porque não nos falta nada, mas queremos que o resto do mundo suspenda seu desenvolvimento antes de ele ter começado. Precisamos respeitar a natureza, é claro, é fundamental para as gerações futuras. Mas as gerações que vivem agora, neste momento, também precisam de bem-estar, de educação, de cultura, de saúde. Nada disso existe sem desenvolvimento econômico! Esse é o desafio: promover um desenvolvimento sustentável. Na América Latina, o Equador dizia “não queremos explorar a Amazônia, mas a comunidade internacional tem que nos compensar por isso”. Isso não aconteceu e qual foi o resultado? Eles mesmos começaram a explorar petróleo na Amazônia. 

Mas podemos pagar pela pegada de carbono numa viagem de avião. 
Aí é que está o problema. Podemos ter vários discursos. A resposta de um ecologista radical seria dizer “é preciso rever as necessidades”. Bem, rever as necessidades é uma frase bonita de se dizer numa sala de conferências porque é “chique”. Mas, em escala mundial, como dizer isso aos chineses e africanos? Eles não querem rever suas necessidades, eles querem satisfazê- las. Há ainda outro discurso: “existe um problema real e temos que apostar na pesquisa e na ciência para encontrar fontes de energia que não sejam poluentes, mas para isso é preciso investimento”. Repare no círculo vicioso: precisamos de dinheiro; para isso precisamos de desenvolvimento; o desenvolvimento não é contra a preservação; porque se não existe dinheiro não existe investimento nas energias do futuro. Um terceiro discurso diz que precisamos “comercializar a nossa pegada de carbono”. Aqui na França houve manifestações contra a ecotaxa para os caminhões de transporte. Pagaremos mais pelo transporte de mercadorias porque é uma atividade emissora de gás carbônico, mas os produtos que compramos também ficarão mais caros, e se forem mais caros serão menos competitivos e as empresas que os fabricam falirão. Não é nada bom, mas é a realidade. Há muitos interesses. 

A sustentabilidade é uma plataforma de marketing eficiente. O senhor não acha que há muitas campanhas humanitárias comerciais?
As empresas se engajam em operações de comunicação para criar uma imagem positiva. O objetivo é utilitarista. Isso é inegável. Todas as causas são boas, mas nem todas são boas para as empresas. Devemos julgá-las por isso? Não creio, porque não há nenhuma obrigação para defender uma causa. Devemos criar um clima favorável para que continuem a buscar a sustentabilidade. Se criarmos um clima condenatório, elas não vão mais investir em causas. De um ponto de vista estritamente ético, não é puro, sim, mas não precisa ser puro! Temos que ser realistas. Essas operações misturam ética e interesses, mas a mistura não é indigna. Antes assim do que o contrário: “Façamos somente negócios e não nos engajemos com nenhuma dimensão moral”. Se a ação for positiva, já basta. 

Como avalia a evolução das redes sociais no mundo? 
Não tenho uma visão negativa. A internet e as telas isolam as pessoas porque cada uma consulta o seu tablet, todos ficam em casa e não se encontram mais. O virtual ameaçaria substituir a comunicação real entre as pessoas. Mas há fenômenos que negam isso. Quando saímos à noite em Paris ou São Paulo, todos têm smartphone, mas os restaurantes estão cheios! Se as pessoas estivessem tão isoladas, ficariam em casa olhando para a tela. Os restaurantes, os bares, as exposições, estão todas repletas. O mundo das telas não destruiu o desejo de relações humanas, pelo contrário: o digital cria o desejo de conhecer coisas. Repare no turismo. A tela se desenvolve, mas o turismo também. As pessoas querem ver ao vivo as pirâmides do Egito, as praias do Rio, e não se contentam em ver na tela. O virtual reforçou o universo que eu chamo de “experiencial”. Trabalhamos com uma tela, é verdade, mas, ao mesmo tempo, temos o universo do zen, dos spas, da ioga e das experiências que se relacionam ao corpo e às sensações. Como você acha que eram as relações humanas dos antigos pastores de ovelhas nas montanhas? Eram muito limitadas! Passamos de uma socialização tradicional limitada à socialização aberta e, principalmente, selecionada. Não concordo que o mundo virtual substitua a experiência real. 

O senhor fala de estetização do mundo, com empresas agregando estilo e emoções aos produtos. A política segue essa tendência?   
Em outros tempos a política dependia da estética. Veja por exemplo a corte de Luís XIV, no palácio de Versailhes. O Estado valorizava a sua grandeza pela arte, pela arquitetura, pelas esculturas, pelos jardins, tudo simbolizando o poder. Hoje em dia, os políticos são mais modestos porque poderíamos acusá-los de esbanjar dinheiro. Essa é a novidade: é o mercado que estetiza o universo. Os produtos de beleza, a moda, o turismo, as embalagens, a publicidade, os carros e os móveis são produtos comerciais. As empresas compreenderam que o estilo, a beleza e as emoções vendem. Não compramos só para sobreviver, mas por prazer, ou para espairecer. A estética, no sentido grego do termo, emocional, é importantíssima. A estetização do mundo está no consumo. O que eu chamo de “capitalismo artista” estetizou o consumidor: as pessoas viajam, se vestem, escutam música, vão à Copa do Mundo de Futebol e veem tevê a cabo sem parar. Os jovens querem ter marcas para ostentar. Todos tiram fotos e colocam no Facebook. Há uma espiral de consumo e de gostos estéticos. Antigamente, a estética  existia nas festas e espetáculos ou quando íamos à igreja, na decoração da capela. Era um mundo de trabalho voltado para a sobrevivência. Hoje, tornamo-nos hiperconsumidores de estética e de tudo que diz respeito à emoção.