Segundo especialistas, expectativa é que maioria do Supremo declare inconstitucionais mudanças em normas e leis que facilitam acesso a armas de fogo, bandeira do atual governo.Será retomado nesta sexta (17/09), no plenário virtual do Supremo Tribunal Federal (STF), o julgamento do chamado “pacotão armamentista” do governo Jair Bolsonaro. O conjunto de ações questiona a legalidade de 31 decretos, normas, portarias e decisões do atual governo, todos eles afrouxando o acesso a armas de fogo no país.

No total são 14 processos, que têm como relatores os ministros Alexandre de Moraes, Edson Fachin e Rosa Weber, e tratam sobre compra, registro, posse e tributação de armas.

Na pauta há questionamentos aos decretos presidenciais de 2019, que aumentaram o leque de possibilidades de posse de arma de fogo; a decisão da Câmara de Comércio Exterior — ligada ao Ministério da Economia — de reduzir a zero a alíquota para a importação de revólveres e pistolas; decretos flexibilizando questões sobre a posse e o porte de arma — que, entre outros pontos, aumentam de dois para seis o limite de armas de fogo que o cidadão comum pode adquirir; portaria dos ministérios da Justiça e da Defesa que ampliaram para 550 o limite mensal de munições que podem ser adquiridas por quem já tem posse ou porte de arma; e a revogação de normas que tratam do rastreamento e da marcação de armas e munições.

Sobre esse último item, na quinta o ministro Alexandre de Moraes já suspendeu a portaria, editada pelo presidente em abril do ano passado.

A expectativa, nos corredores do STF, é que a maioria dos ministros avalie como inconstitucionais as normas recentes do Executivo sobre o tema. E isso nada tem que ver com o clima de animosidade atual entre o Supremo e o presidente Bolsonaro e seus apoiadores. Tal postura já era esperada anteriormente ao quadro que se desenhou nas últimas semanas.

O julgamento, em plenário virtual, vai até o dia 24. Ainda é possível que algum ministro peça vista (mais tempo para avaliar), suspendendo os trâmites novamente. Também existe a possibilidade de que seja pedido destaque sobre o tema — o que implicaria pautá-lo para uma sessão plenária física, na qual os votos são justificados.

Inconstitucionalidade

O grande nó jurídico da questão tem que ver com a forma como as decisões da política armamentista de Bolsonaro foram tomadas, ferindo o equilíbrio entre os poderes. “Independentemente do cenário político atual, desfavorável ao governo, a alteração na política armamentista pretendida por Bolsonaro deve ser barrada pelo Supremo por ser inconstitucional, conforme apontou à época da edição do decreto sobre armas a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, em maio de 2019”, afirma o cientista social Rogério Baptistini Mendes, professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie.

Para alterar a Lei 10.826 — conhecida como Estatuto do Desarmamento, de 2003 —, calo no pé de quem defende o armamentismo, seria preciso enviar ao Congresso um novo projeto de lei. E aí obedecer todo o trâmite convencional: ser debatido, emendado, aprovado ou rejeitado pelo Legislativo. “Um decreto não pode se sobrepor a uma lei”, acrescenta Mendes.

A artimanha consiste no chamado poder regulamentar. Isso porque, pelas regras do jogo brasileiro, embora nem toda lei precise de regulamentação, o Executivo pode regulamentar leis sempre que julgar necessário ou conveniente. O Estatuto do Desarmamento, depois de promulgado, passou por regulamentações. Mas, desde que assumiu o governo, Bolsonaro tem editado mudanças nessa legislação que ultrapassariam o papel de regulamentar — ferindo as bases da própria lei.

“Quando o STF verifica os decretos sobre armas, o objetivo principal é avaliar se os decretos estão de fato regulando a lei existente, o Estatuto do Desarmamento, ou se estão, sob pretexto de regular, contrariando a lei. Como se o decreto estivesse revogando a lei. Aí o STF pode derrubar”, explica o constitucionalista Rubens Glezer, professor da FGV-Direito.

“O que está se vendo não é um juízo político sobre o decreto, se é bom ou se é ruim, mas se aquela decisão política [de Bolsonaro] deveria ser tomada em outro âmbito, modificando a lei, por exemplo”, prossegue.

O ponto, conforme ressalta Glezer, é que quando uma decisão assim é feita por decreto e não por lei, configura-se um desequilíbrio entre os poderes. “Não é apenas formalidade se se trata de lei ou de decreto. Lei passa por negociações, concessões perante o Legislativo. Tem um trâmite, uma visibilidade pública, um tempo diferente que o decreto não tem. As medidas que forem avaliadas como uma usurpação do espaço legislativo devem e provavelmente serão derrubadas”, argumenta.

Organizações não governamentais, como o Instituto Sou da Paz, acompanham com altas expectativas o julgamento. “Todas essas normas do governo Bolsonaro foram publicadas para enfraquecer a política do desarmamento. Temos convicção que, do ponto de vista legal e formal, essas alterações foram feitas em desrespeito aos debates no Congresso, de forma unilateral e autoritária [pelo Executivo]”, comenta o advogado Felippe Angeli, do Instituto.

“O Supremo está analisando os atos do presidente à luz da lei”, diz ele. “Não vai resolver a questão [da política armamentista], mas vai colocar os limites constitucionais.”

Limites

Para os especialistas, é exatamente isso que o Judiciário tem feito, aliás: colocar limites constitucionais às tentativas de ações autoritárias de Bolsonaro. “A corte suprema, por sua própria composição e pelo caráter político de suas decisões, tende a conter o excessos da pauta bolsonarista, principalmente os avanços contra o regime democrático”, pontua Mendes.

O cientista social acredita que o índice de rejeição popular elevado do presidente no atual momento dificulta ainda mais qualquer trânsito junto ao STF que pudesse ajudá-lo, porque ele “já não conta com a pressão da sociedade sobre os ministros” capaz de influenciar na aprovação de “suas iniciativas destinadas a desmontar os arranjos saídos” da Constituição de 1988.

“Embora exista um grupo barulhento e um lobby poderoso em defesa do armamento da população, ele é minoritário na sociedade”, ressalta Mendes. “Hoje, o STF representa o poder de contenção às aventuras antidemocráticas de Bolsonaro. Isso não significa, entretanto, que as votações sejam orientadas exclusivamente por critérios de neutralidade e observância dos princípios constitucionais. Mas exatamente o contrário: a corte está a fazer política.”

Na avaliação do constitucionalista Glezer, o papel do STF não é controlar decisões de responsabilidade política do presidente, mas preservar as instituições representativas, garantindo que as decisões obedeçam aos ritos necessários.

“Com isso, [o Supremo] tem derrubado todas as medidas que, a pretexto de se fingirem, de se passarem por medidas de competência do presidente, estão na verdade fazendo uma burla à competência do Congresso ou uma burla ao federalismo, à competência dos governadores”, comenta. “Ele [o STF] tem mantido um equilíbrio importante das competências institucionais, um pilar fundamental ao regime democrático e ao constitucionalismo.”