Yosemite significa Assassinos no idioma dos índios ahwahneechees, os primeiros habitantes do vale californiano que impregna o imaginário ecológico norte-americano. Hoje, o famoso parque nacional sofre com uma nova ameaça selvagem: a poluição

A cada ano, 4 milhões de turistas visitam o Parque Nacional de Yosemite, nas montanhas da Serra Nevada, no centro-leste da Califórnia, a terra das sequoias, as maiores e mais antigas criaturas vivas do planeta. Patrimônio da Unesco desde 1984 e totem do imaginário norte-americano, a reserva dos penhascos esculpidos pelo Rio Merced (misericórdia, em espanhol) está literalmente pedindo misericórdia diante das ameaças que sofre.

Escalar a parede sudoeste de El Capitan é o sonho de todo alpinista. Desde 1974, 24 morreram tentando. No detalhe, um dos 500 ursos-negros do parque

 

Tudo em Yosemite é especial, a começar pelo fato de sua criação pelo presidente Abraham Lincoln, em 1864, ter inspirado o surgimento do “conceito” de parque nacional – aquela área com características especiais, dignas de preservação cultural e ambiental. A reserva, com pouco mais de 3 mil quilômetros quadrados, é habitat de 250 espécies de vertebrados, 226 tipos de aves, 7 mil espécies de flora e 22 categorias de serpentes. Mas o mais extraordinário é a sua beleza cênica. O vale central, com 13 km de comprimento por 2 de largura, é rodeado por majestosas formações geológicas de granito, cavadas há 3 milhões de anos pelo Rio Merced.

Galen Clark (1814- 1910) descobriu o parque e suas sequoias. Foi guarda-florestal por 24 anos

Apesar de protegido, o parque sofre ameaças invisíveis, porém reais e nada sutis, da poluição trazida do exterior pelos ventos e chuvas. A contaminação também chega com os pesticidas despejados pelos aviões que sobrevoam as plantações no sopé da serra. O sapo-de-pata-amarela, outrora típico, foi oficialmente extinto. O aquecimento global está derretendo as geleiras das montanhas, cujo desaparecimento ocorrerá em 50 anos se o degelo continuar no ritmo atual. A neve é crucial para abastecer as nascentes dos riachos e as cachoeiras da região, que desaparecem durante o verão e voltam a “funcionar” no outono. A mais conhecida delas é a Catarata Yosemite, com 739 metros de queda, a maior da América do Norte e a sétima maior do mundo.

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Não tire nada além de fotografias

Muitos visitantes vão a Yosemite atraídos pelas fotos do americano Ansel Adams (1902- 1984), que começou a fotografar o parque com 14 anos, com uma câmera Kodak, em sua primeira visita com a família. Durante anos voltou ao parque e documentou a imponência das montanhas e os desfiladeiros íngremes em magníficas fotos em preto e branco. Depois de Adams, o conceito de fotografia de paisagem nunca mais foi o mesmo. Ao contrário do registro frio, didático e sem graça das revistas geográficas dos anos 1930 – que mais pareciam arte de calendário de açougue ou de padaria -, suas “naturezas-mortas” eram vivas e atraentes.

Muitos percorreram as trilhas descobertas pelas expedições espanholas que chegaram à base da Serra Nevada no fim do século 17. No entanto, o primeiro americano de origem europeia a entrar no vale elevado foi o batedor militar Joseph Walker, em 1832. Walker encontrou índios amigáveis, muitos ursos, veados, castores, alces e uma natureza deslumbrante. Depois de seus relatos e mapas, os pioneiros partiram em busca de uma passagem pela serra para as terras da Califórnia, embora o território fosse mexicano desde 1821, quando o México se tornou independente da Espanha. A invasão “gringa” desagradava, mas não havia soldados para controlar o imenso território. O receio mexicano logo se tornou um trauma.

O primeiro registro de Yosemite, feito por Zenas Leonard, em 1833, já mencionava as belezas naturais do local e sugeria a imagem da Terra Prometida, que logo se espalhou pela América. Antes de Hollywood, a Califórnia já atraía aventureiros atrás de fortuna, peles e ouro. O metal foi descoberto em 1848. Uma semana depois do achado, a antiga colônia foi anexada aos Estados Unidos. Foi a “corrida do ouro” que gerou um tradicional conselho norte-americano: “Vá para o Oeste, jovem!”

Não deixe nada além de pegadas

Para um brasileiro que conhece a beleza selvagem da floresta amazônica, a natureza de Yosemite é bem mais dócil. São milhares de lagos cristalinos, 2,5 mil km de rios e 1,3 mil km de trilhas para percorrer a pé, cachoeiras e montanhas difíceis de escalar como El Capitan e Half Dome (Meia Abóbada), cuja iconografia está para o imaginário norte-americano como o Pão de Açúcar está para o Brasil.

De São Francisco até o vale são 320 km e quatro horas de carro. Em 1900, quando o turismo interno começou a se popularizar, os 5 mil visitantes anuais levavam dois dias para chegar ao parque, de trem ou em diligências. Desde então, assim como o Grand Canyon, Yosemite é o programa familiar essencial da identidade norte-americana.

Nathan Stein, 48 anos, trouxe a família para confirmar uma lembrança. “Estive aqui menino, no verão de 1973, com meu pai recém-separado. Saímos de Chicago de carro, para duas semanas de aventuras e deslumbramento. Nunca tínhamos ficado tanto tempo sozinhos e, nessa viagem, descobri Yosemite com meu pai. Vimos coiotes, pássaros, flores, borboletas e ainda tenho uma cicatriz no joelho de uma queda no riacho. Meu pai faleceu no fim do ano passado. Eu trouxe suas cinzas e espalhei pelo bosque. Ele aprovaria esta última morada, num dos lugares mais bonitos da Terra.”

Não subestime as sequoias

Apesar do clichê, o parque é, sem dúvida, uma celebração à vida. Como não se deslumbrar diante das montanhas e dos penhascos, ou diante de uma floresta de sequoias? Os gigantes com dezenas de metros de altura e circunferência de 12 metros vivem mais de 3 mil anos. São tão robustas que aguentam a escavação de um túnel no tronco para a passagem de carros, prática felizmente abandonada há muitos anos.

“A mais velha se chama Grizzly, tem entre 2 mil e 3 mil anos e fica no sul do parque, no Bosque das Mariposas. Mede 92,7 metros de altura a partir da base e tem 963 metros cúbicos de volume”, diz Kari Hobb, 26 anos, guarda-florestal ruiva como uma sequoia, assessora de relações públicas de Yosemite. “Outra sequoia famosa é a Washington, na mesma área, mais larga, com 1.018 m³ de volume.”

A sobrevivência das sequoias depende de uma ironia da natureza. Elas só se reproduzem com auxílio de incêndios, o maior perigo para uma floresta. O calor do fogo faz as pinhas se soltarem das copas e cair no chão, onde germinam. A casca grossa que protege as árvores vermelhas chega a 60 centímetros de espessura e é resistente ao fogo. Ao desmatarem as copas, os incêndios possibilitam aos raios solares alcançar os galhos, completando um estranho ciclo de vida. A sequoia é como a mitológica ave fênix, que renasce das cinzas.

A árvore absorve 100 m³ de água diariamente, puxados da terra e bombeados tronco acima até a folhagem, por meio de um sistema hidráulico natural mais sofisticado do que qualquer um já inventado pelo homem. A natureza tem razões que o homem desconhece, mas faz questão de ignorar ou destruir.

O interessante é que as raízes, em proporção à sua altura, são pequenas e rasas, uma fonte de problemas para os guardas-florestais que vigiam os descuidos e os acidentes no parque. É necessário limitar as áreas e colocar cercados em volta da base dos troncos.

Até agora 96 filmes usaram Yosemite como cenário ou personagem de documentários. Os mais famosos são Indiana Jones e o Templo da Perdição (1984), o aterrorizante O Iluminado (1977), de Stanley Kubrick, e Jornada nas Estrelas 5 (1989) – o que movimenta excursões periódicas de trekkies (os fãs da série) que usam as falsas orelhas do Sr. Spock e falam o idioma do planeta Klingon.

Não brinque com os ursos

De cada entrada paga, 20% é repassado para outros parques com menos visitantes e renda. “Recebemos US$ 29 milhões de Washington como ajuda de custo” diz Kari. “Nosso principal problema é o grande número de acessos. No verão, em junho, julho e agosto, temos 600 mil visitas por mês. É necessário cuidado para não sujar o terreno com lixo não perecível, não andar fora das trilhas, não pisar nas raízes das árvores, etc. Não temos pessoal suficiente para vigiar tanta gente. Mas em geral as pessoas são educadas e respeitam o local, graças às muitas campanhas pró-natureza. Minha felicidade é trabalhar e viver onde milhões de pessoas passam férias”, afirma a guarda-florestal.

Cerca de 90% dos turistas visitam apenas o vale. Muito poucos se aventuram a fazer trilhas, subir montanhas ou mesmo sair dos carros, a não ser para fotografar ou comer. Há multa pesada para quem alimenta animais. Os bichos desaprendem a buscar comida na natureza. Animais que se tornam agressivos por causa de comida são abatidos.

No meio da visita do turista Peter Hiller, por exemplo, apareceu um urso, um grande urso-negro. Distraído pelas belezas cênicas, Hiller fotografava os raios do sol atrás das montanhas e só notou o perigo quando sua mulher gritou do carro: “Cuidado, ele está muito perto!” Yosemite significa Assassinos no idioma dos índios ahwahneechees, os primeiros habitantes do vale. Mas o primeiro urso livre, nada leve (200 quilos) e solto que Peter viu na vida era mais medroso do que ele. Com o grito, o animal disparou bosque adentro, olhando de soslaio o invasor.

O receio mútuo era injustificado: ao contrário do feroz urso-cinza e do urso-pardo, os 500 ursos-negros (Ursus americanus) de Yosemite são pacíficos e herbívoros, e só se alimentam de frutas, nozes e pequenos animais. Alguns são atropelados por carros, dentro da reserva.

No Parque de Yellowstone, que se estende pelos Estados de Wyoming e Montana (célebre pelo desenho animado do urso Zé Colmeia e o amigo Catatau), havia ursos-pardos (Ursus arctos horribilis), perigosos e ferozes, que atacavam pessoas, seja por medo seja para proteger filhotes ou comida. Estão extintos desde 1914. Mas naquele começo de noite em Yosemite, para Peter Hiller, frente a frente com a fera, todos os ursos eram pardos.

Kari ensina como lidar com os amigos ursos.”Não pense em brigar, porque eles são mais fortes. Não corra, porque eles são mais rápidos e sobem nas árvores com facilidade. Se algum o abordar, agite bastante os braços, tente ficar maior do que é e, em último caso, jogue pedras. Não para machucar, mas para assustar.”

Caçar em Yosemite é crime federal. A única morte por ataque animal ocorreu em 1970, quando um veado chifrou um turista. “O que realmente provoca mortes em Yosemite é tentar escalar as íngremes paredes das montanhas: 24 morreram desde 1974”, diz Kari Hobbs. Mesmo assim, as encostas estão repletas de alpinistas, que podem ser vistos por binóculos ou teleobjetivas, encarando desafios mil metros acima do vale.

Ao visitar Yosemite em 1871, o filósofo Ralph Waldo Emerson escreveu: “A grandeza destas montanhas, talvez inigualáveis no mundo, aqui se desnuda tal como atletas em exibição, mostrando sua altura e orgulho nas paredes de granito, vestidas com o boné da liberdade e a neve sobre as cabeças.” Um ano antes, ao conhecer Yosemite, o naturalista escocês-americano John Muir deixou um depoimento que parece manifesto ecológico: “Milhares de pessoas urbanas, cansadas e nervosas com a agitação da civilização, estão começando a descobrir que visitar uma montanha é como voltar para casa. As florestas encarnam necessidades: as montanhas, os parques e as reservas são úteis não apenas como produtoras de madeira ou de água, mas como fontes da vida.”