Assim como as pessoas e nações, também as cidades e regiões têm seu destino histórico. Muitas vezes, só o passar do tempo permite revelá-lo com clareza. A Franche-Comté, província francesa na fronteira com a Suíça, não fugiu à regra. Mas no caso desse território agreste, outrora habitado quase que apenas por camponeses simples e religiosos, ninguém poderia imaginar que seu destino seria marcado pela escravidão e pelos processos abolicionistas que correram o mundo entre a segunda metade do século 18 e a primeira metade do século 19.


À esquerda, entrada do forte. À direita, artefatos para prender escravos expostos na Casa da Negritude, em Champagney

Para começar, na Franche-Comté não havia escravos nesse período. Não havia sequer, ao que se saiba, um único morador negro. Muitos nem sabiam que existiam no mundo pessoas de tez muito escura. Apesar disso, durante aquelas décadas, inúmeras situações e o surgimento de vários personagens de primeira grandeza contribuíram para dar à província a marca indelével que ela exibe até hoje: a de uma terra habitada por um povo libertário e decididamente abolicionista.

A tal ponto que, em 2004 – “ano internacional de comemoração da luta contra a escravidão e da sua abolição” , segundo a Unesco –, criou-se ali um roteiro­ turísti­co­ totalmente dedicado ao tema, a “Route des Abolitions”, Rota das Abolições. Ele é hoje um dos itinerários geográficos, históricos, culturais e espirituais mais interessantes da França. Inscrita em projeto internacional da Unesco, a Rota se apresenta como um “circuito do dever de memória em relação ao tráfico, à escravidão, as resistências e as abolições”.

O “Napoleão Negro”

A Rota começa em Besançon, a bela e rica capital da Franche-Comté, fundada pelos romanos e, no passado, importante encruzilhada comercial e cultural entre a França, a Suíça e a Alemanha. Caracterizada por grandes palácios barrocos e construções de pedra medievais, a cidade tem a mais importante galeria de obras de arte na França fora de Paris: o Museu de Belas-Artes e Arqueologia, dono de uma excelente coleção iniciada em 1694 e que não para de crescer. Entre os seus tesouros destaca-se um grande acervo de artefatos do antigo Egito, bem como pinturas de Bellini, Tintoretto, Rubens, Goya, Cranach, Zurbarán, Ingres, Courbet, Bonnard, Matisse, Picasso e muitos outros do mesmo calibre.

Mas, para os interesses da Rota das Abolições, o personagem que mais importa na cidade é François-Dominique Toussaint Louverture, negro nascido escravo em 20 de maio de 1743, no Caribe francês, e que morreu prisioneiro em 8 de abril de 1803 no Forte de Joux, imensa fortaleza de pedra construída em La Cluse-et-Mijoux, perto de Besançon. Louverture foi o maior líder da Revolução haitiana e, a seguir, governador de Saint Domingue, o nome do Haiti na época. Primeiro líder negro a vencer as forças de um império colonial europeu em seu próprio país, ele impôs a Napoleão Bonaparte a sua primeira derrota militar. Pela sua bravura, foi apelidado “Napoleão Negro”.


À esquerda, vista do centro histórico de Besançon, a capital da província. À direita, a igreja e a casa onde viveu a madre Anne-Marie Javouhey, em Jallanges. As freiras que moram lá conduzem os visitantes pela propriedade e apresentam a eles a história da fundadora da sua ordem

Líder na luta para a liberação dos escravos haitianos, ele se tornou uma figura histórica importante no movimento de emancipação dos negros na América. Iniciados em 1791, os conflitos tinham à frente Louverture e, ao fundo, os incêndios nos canaviais. Em 1794, quando o governo francês aboliu a escravidão nas colônias, os haitianos já tinham conquistado sua liberdade.

O Haiti era, porém, a mais lucrativa colônia francesa, e o fim da escravatura desagradou a Napoleão. Ele enviou à colônia seu cunhado, Charles Leclerc, com uma intenção declarada (depor Louverture) e outra secreta (restaurar a escravidão na ilha). Graças a com­plôs e traições, Leclerc prendeu Louverture. Ele e sua família foram levados para a França e encarcerados. Louverture morreu de pneumonia, em 1803, e foi enterrado sem caixão em uma gruta embaixo da capela da prisão. A masmorra onde passou seus últimos meses é um ponto de peregrinação obrigatório para quem estuda as ações abolicionistas.

Consciência limpa

Na Rota estão as localidades de Chamblanc, Seurre e Jallanges, muito próximas entre si. Em Jallanges nasceu e viveu madre Anne-Marie Javouhey, filha de um abastado fazendeiro que se tornou personagem notável da saga abolicionista. Sua casa abriga hoje algumas freiras da ordem que ela fundou e conserva ainda o mobiliário original. São essas freiras que conduzem os visitantes e apresentam-lhes a história da fundadora. 


O forte de Joux tem apenas um ponto de retirada de água, que era levada para o alto através de um poço com profundidade total de 800 metros

Embora religiosa e devota, Anne-Marie tinha personalidade forte. Nascida em 1779 e tornada freira em 1807, ela foi mandada para a Guiana Francesa em 1828. Lá, tomou contato pela primeira vez com os horrores da escravidão e se rebelou contra ela. Pragmática, logo percebeu que não tinha poder para uma ação política efetiva, mas decidiu fazer tudo ao seu alcance em prol da abolição. Com a herança paterna, começou a comprar escravos, a fim de libertá-los. Antes disso, porém, ela os preparava durante alguns anos, ensinando-os a ler e a escrever, a desempenhar algum ofício, a desenvolver a sua consciência de homens e mulheres livres. Quando o escravo estava pronto, ganhava um certificado de libertação, roupas decentes e… um par de sapatos. Seriam os primeiros calçados da sua vida. Em quase todos os países escravagistas das Américas (Brasil inclusive), os escravos não podiam usar sapatos…

Anne-Marie comprou­ terras na Guiana e nelas fundou uma cidade, Maná, para onde se mudou com todas as irmãs da ordem e centenas de libertos ou escravos em processo de libertação. Foi então chamada pelo cardeal de Caiena, a capital da província. Como no Brasil e na maior parte dos países americanos, a Igreja era dona de escravos e auferia grandes lucros com o tráfico. Autoridade máxima da Igreja na colônia, o cardeal ordenou que Anne-Marie abandonasse imediatamente seu projeto, sob pena de excomunhão. A resposta que ela deu está nos anais da história das abolições: “Pode me excomungar, eminência. Minha consciência limpa é mais importante do que todos os lucros que a Igreja possa auferir com esse negócio infame”.


A masmorra ocupada por Toussaint Louverture no forte de Joux (esquerda) e um busto do revolucionário haitiano (direita)

Anne-Marie foi realmente excomungada. Mas nunca deixou o hábito de religiosa e voltou para Maná, onde continuou sua obra com recursos próprios. Cerca de dois anos depois, foi reabilitada pela Igreja e prosseguiu até o fim libertando escravos. Hoje, seus despojos descansam no Panteão da França.

Abade libertário

A Rota das Abolições continua em Emberménil, onde foi pároco durante oito anos Henri Jean-Baptiste Grégoire, conhecido na história da França como Abade Gregório. Nascido em 1750 e morto em 1811, em Paris, Gregório foi uma das principais figuras da Revolução Francesa. Na Assembleia Constituinte, ele pediu não apenas a abolição total dos privilégios dos nobres e dos poderosos, mas também o fim da escravidão. Lutou a favor do sufrágio universal e da concessão de direitos cívicos e políticos aos judeus. Fundador do Conservatório Nacional das Artes e Ofícios, ele participou da criação do Instituto da França e tornou-se membro dele. Teve ação preponderante na elaboração e promulgação da Carta dos Direitos do Homem, precursora da Carta dos Direitos Humanos da ONU.


À esquerda, entrada do museu dedicado ao Abade Gregório, em Embérmenil. À direita, salão da Casa da Negritude

Gregório desenvolveu e amadureceu suas ideias libertárias em Emberménil, onde um pequeno museu que leva seu nome traça, com documentos e obras de arte, a trajetória completa da sua vida e obra. Como Anne-Marie Javouhey, seus restos mortais também estão no Panteão da França, em Paris.

A Rota prossegue em Fessenheim, onde está a Maison Schoelcher. Nela viveu Victor Schoelcher, que foi secretário de Estado para as Colônias e que, em 1848, fez votar o decreto para a abolição definitiva da escravidão. Humanista, Schoelcher defendeu ainda o fim da pena de morte, as causas das mulheres e os direitos da criança. Seus despojos também estão no Panteão da França.

Cidade antiescravidão

O episódio mais surpreendente da saga abolicionista da Franche-Comté se liga à população da pequena Champagney. Ali, em março de 1789, seus habitantes decidiram, por unanimidade, elaborar um documento de condenação à escravidão e à exploração do homem. Naquele ano, tentando acalmar a exaltada população do país, o rei Luís XVI solicitou às comunidades que preparassem cahiers de doléances, cadernos de queixas, contendo os problemas mais urgentes e graves vividos nessas localidades.


A bucólica Besançon é a base mais adequada para os turistas da Rota

Era uma medida demagógica, já que o rei nunca tomou conhecimento das centenas de cadernos que chegaram ao palácio. Todos tratavam de questões locais – menos o caderno de Champagney. Nele, os moradores solicitavam ao rei apenas que proclamasse a abolição, pois “os habitantes da comunidade de Champagney não conseguem parar de pensar nos males que sofrem os negros nas colônias sem ter o coração dilacerado pela dor mais pungente”.

Em Champagney funciona hoje a Maison de la Negritude (Casa da Negritude), que homenageia o gesto corajoso dos moradores locais. Nesse espaço, gerido pela prefeitura, a escravidão e o tráfico negreiro são hoje evocados com a exposição de objetos, fotos, quadros e documentos relativos ao tema, notadamente a reprodução em escala natural do porão de um navio negreiro. A instituição dedica-se também a cursos, encontros e congressos que atraem especialistas de todo o mundo.

A Franche-Comté não se limita à Rota das Abolições. Além de ótimos hotéis, ela tem uma culinária única, dominada por pratos da antiga cozinha francesa, repleta de carnes, embutidos e queijos, e pelos vinhos secos da região.