Só estive pessoalmente com Pierre Verger três vezes. A primeira foi em 1992, na Pinacoteca de São Paulo (SP), quando ele veio inaugurar uma grande exposição de obras de artistas negros brasileiros. Em homenagem a Verger, Emanoel Araújo, então diretor da Pinacoteca, tivera a feliz ideia de pôr no saguão de entrada da casa três atabaques com seus respectivos ogãs vestidos a caráter. Quando Verger chegou, vestido com uma daquelas túnicas curtas de algodão cru e estampadas com motivos africanos que tinham se tornado uma de suas marcas registradas, os atabaques começaram a bater. O povo abriu alas e Verger entrou com passo lento – o Tempo, implacável inquice (orixá) de Angola, já reclamava direito sobre as suas pernas. Pouco importava. Ele parecia um velho rei e, ao ver aquele triunfo, uma pergunta surgiu na minha mente: “Será ele quem carrega o orixá Xangô, ou será Xangô quem o carrega?”

Tempos depois, na Bahia, eu lhe fiz a pergunta e ele respondeu de modo quase enigmático: “Dizem que é o orixá quem escolhe o filho, e não o contrário, mas ninguém sabe qual é o critério dessa escolha. Talvez se trate simplesmente de uma troca de necessidades. O filho precisa do orixá para se tornar quem ele realmente é. O orixá precisa do filho para que sua existência se torne real.” Até hoje medito nessa resposta.

Suspeito que a ligação de quase uma vida inteira que Verger manteve com o universo afro-brasileiro esteja sintetizada nessa única frase.

No dia seguinte ao da sua apresentação na Pinacoteca, trazido por Carlos Eugênio Marcondes de Moura, que era seu cicerone em São Paulo, Verger foi visitar a Zipak, livraria da qual na época eu era proprietário. Ficamos os três sentados um bom tempo nos fundos da loja, batendo papo. Quando resolvi lhe mostrar a seção de literatura da tradição afro-brasileira, um dos orgulhos da livraria, ele me presenteou com um lacônico: “Tem livro de umbanda em excesso.” Assim, fiquei sabendo que umbanda não era exatamente a sua preferência. Além disso, verifiquei que sua fama de dizer sempre o que pensava, de não ter papas na língua, era bem verdadeira.

Nosso maior – em todos os sentidos – encontro foi em Salvador (BA), na casa onde ele morava e que abriga hoje a sede da Fundação Pierre Verger, situada no modesto bairro de Vasco da Gama. Foi na tarde do dia 4 de novembro de 1995. Era o dia do seu aniversário. Verger completava veneráveis 93 anos de idade, e eu nem sequer sabia disso. Não sabia, tampouco, que aquele seria nosso último encontro. Ele faleceu no sono, poucos meses depois, em 11 de fevereiro de 1996.

Uma força inexorável e constante nos impele à frente, em direção à descoberta de nós mesmos

“Procure enfocar Pierre Verger mais como grande viajante, etnólogo e fotógrafo do que como babalaô do candomblé”, recomendara Eduardo Araia, então diretor de redação de PLANETA, ao me despachar para a Bahia com a missão de entrevistar Verger. Subindo a ladeira íngreme e vendo de longe o casarão onde ele morava, algo me disse que seria difícil atender àquela recomendação. Para começar, o sobrado era todo pintado de vermelho sangue, uma das cores do orixá Xangô, e cercado por altas touceiras de bambu, planta-emblema do orixá Iansã, esposa de Xangô. Fui recebido no salão do primeiro andar. Era ao mesmo tempo quarto de dormir, refeitório, escritório, sala de visitas, biblioteca e galeria de arte e de objetos pessoais de Verger. O sentimento de que seria impossível separar o Verger cientista do Verger sacerdote de candomblé aumentou.

 

A singeleza do salão era absoluta. O chão era todo coberto com esteiras de palha grossa. A cama onde ele dormia mais parecia um catre de monge franciscano. Ao lado dela estava uma grande escultura de um guerreiro africano empunhando o que me pareceu ser uma espada de Ogum. Perto da escultura havia um machado duplo de Xangô. Dentro de um vaso, uma porção de espadas e punhais ritualísticos. Pousada sobre uma cômoda estava a velha câmera fotográfica Rolleiflex, desde sempre sua fiel companheira. Sua escrivaninha era uma grande mesa coberta de livros, papéis, jornais, revistas, um velho e quase destroçado abajur e um coçador de costas. Achei que penetrava na casa de algum rei tribal africano.

Havia um falatório e um vaivém de moças que trabalhavam na Fundação. Vestido, como na vez da Pinacoteca de São Paulo, com uma das suas túnicas de algodão estampadas com motivos africanos, Verger estava ao telefone, sentado na cama, recebendo cumprimentos de aniversário.

Sentei numa cadeira e aproveitei para rememorar as perguntas que gostaria de lhe fazer a seguir. Algumas estavam na minha cabeça desde que, havia anos, tomara contato com a obra e com lances de sua biografia. Por que ele, nascido em 1902, em Paris, na França, no seio da mais alta burguesia judaica europeia, sobrinho de banqueiros poderosos, herdeiro de grande fortuna – embora, na época, surgissem comentários de que a empresa da família estivesse falida -, lançara tudo aos ares para se transformar num dos grandes viajantes e etnofotógrafos do século 20?

Por que, embora formado pela melhor cultura racionalista francesa, dedicou a maior parte da sua vida ao estudo e à preservação da tradição espiritual afro-brasileira? Por que tal interesse o levou, na África, a ser consagrado babalaô, recebendo o nome de fatumbi, e ser, na Bahia, iniciado nos mistérios do culto a Xangô pelas mãos de Mãe Senhora, uma das maiores mães de santo baianas, e receber dela o oiê, isto é, o título ou, mais apropriadamente, o cargo de Ojuobá (os olhos do rei)? Por que, em 1946, após girar o mundo e passar muitos anos em países da África Ocidental, ele desembarcou em Salvador e decidiu viver na Bahia até o final dos seus dias?

De repente, Verger pôs o telefone no gancho, olhou para mim e fez sinal para que me aproximasse. Quando lhe disse que estava lá para uma entrevista devidamente marcada, ele fez cara de asco: “Nem pensar! Já dei entrevistas demais na minha vida. Vocês sempre fazem as mesmas perguntas e sou obrigado a dar as mesmas respostas. Que coisa chata!” Fiquei mudo de decepção. Durante quase um minuto, ele pareceu ter perdido todo e qualquer interesse pela minha pessoa. Depois, com um estranho sorriso que misturava surpreendente malícia com a sua habitual severidade, completou: “Mas hoje é meu aniversário; se você quiser ficar para um bate-papo informal, terei o maior prazer.”

Alguém já me dissera que Verger gostava de pregar peças nas pessoas e ficar observando a reação delas. O Tempo não conseguira acabar com aquele bom humor um tanto ferino que era uma característica da sua personalidade. Foi nesse tom que ele respondeu à primeira questão: “Abandonei a existência burguesa na Europa quando percebi que não suportaria passar o resto da minha vida num meio social no qual as pessoas passam o tempo todo tentando causar impressão umas às outras, no qual a maior parte dos indivíduos se transforma em personagens fictícios que saem por aí em busca desesperada de confirmação e em que todos ou quase todos representam um papel, à maneira de papagaios instruídos.”

 

Todo o tempo, suas respostas objetivas foram entremeadas por divagações cheias de pungente nostalgia. Contou que certa vez, quando era ainda um homem jovem, saiu de Phnom Penh, a capital do Camboja, e caminhou à noite até uma praia deserta. Lá, sentou solitário na areia e se pôs a fitar durante horas o mar escuro, “deixando que o mar entrasse dentro de mim”. Depois de alguns segundos de silêncio, ele completou: “Deve ser coisa de família. Minha mãe também gostava de ficar quieta diante do mar, absorta em seus pensamentos.”

Quando lhe disse que naquela mesma noite eu iria ao Ilê Opô Afonjá ver uma festa de Omulu, ele pediu: “Leve um abraço meu para Estela de Oxóssi, minha irmã querida. Fomos feitos, juntos, pela mesma mãe de santo.” Mas, quando revelei que quem me levaria àquele terreiro seria Fulano de Tal, o seu gênio mordaz aflorou de imediato: “Fulano de Tal? Grande fuxiqueiro. Não conte a ele nenhum segredo, porque a Bahia inteira vai saber.”

Houve um inter valo para fotos, tiradas pelo fotógrafo Lamberto Scipioni, que me acompanhava na visita. “Ótimo que você não usa flash, não gosto de luz artificial. A luz ideal para a fotografia é a luz do dia”, lhe disse Verger. Dito isso, começou a se mover, apoiado em sua bengala, de um canto para outro do salão. Ele mesmo escolhia os ângulos, perto das janelas, e as melhores posições para se fazer fotografar. Scipioni, em certo momento, veio a mim e disse com ar cúmplice e divertido: “Ele está se fotografando através da minha câmera…”

 

Por que o interesse pela tradição afro-brasileira?

Esse interesse surgiu como uma decorrência natural dos fatos. Em 1940, consegui emprego como fotógrafo do governo francês da África Ocidental, em Dacar, Senegal. Foi lá que encontrei Théodore Monod, um dos grande etnólogos do século 20. Ele era diretor do Instituto Francês da África Negra (Ifan). Monod foi um fator determinante do meu destino. Foi ele que, anos depois, quando eu já me instalara na Bahia, me deu uma bolsa do Ifan para estudar as raízes africanas das comunidades negras da Bahia e do Recife. Mergulhei de cabeça na tarefa. A primeira coisa que descobri foi que seria impossível desempenhá-la bem se o mergulho fosse apenas intelectual, da cabeça. Teria de implicar também o meu corpo e a minha alma. Quando decidi que assim seria, tudo foi acontecendo como num caleidoscópio. Conto tudo isso em meus livros.

Novamente apareceu o tom de nostalgia quando Pierre começou a falar do seu primeiro contato com o mundo africano:

“Foi em Paris, na década de 1930. Comecei a frequentar um lugar chamado Bal Nègre, uma espécie de bar onde se reuniam negros da África e das Antilhas, gente pobre, trabalhadores imigrados que deviam enfrentar no dia a dia o histórico preconceito europeu contra as pessoas de cor. Eles, no entanto, dançavam e cantavam a noite toda, ao som do maior batuque. A atmosfera de alegria e descontração era total, completamente diversa do mundo infestado de formalidades inúteis onde eu nascera e vivera até então. Quando conheci o Bal Nègre, tive uma certeza: eu era um deles. Fui reencontrar esse mesmo clima quando cheguei à Bahia, e ele foi um dos fatores importantes que determinaram minha opção de viver aqui.

E quais foram os outros fatores?

O respeito à diferença, por exemplo. Sobretudo a diferença religiosa. Na Europa, as pessoas de uma religião com frequência discriminam as pessoas das outras. O católico discrimina o judeu e vice-versa. O protestante discrimina o muçulmano e vice-versa. No candomblé isso não acontece. Um filho de Oxalá não vai discriminar um filho de Oxóssi só porque se trata de um outro orixá. Não vai tampouco discriminar um católico, um judeu ou um muçulmano porque sabe que cada um deles, como todas as pessoas, também carrega um orixá. Existem aceitação e respeito pelas características próprias do outro, simplesmente porque se considera que elas são características que derivam do orixá da pessoa. Esse respeito à diferença ultrapassa, por sinal, os limites da Bahia e chega ao Brasil como um todo. Existirá outro país, como este, onde tantas pessoas acham a coisa mais normal frequentar um templo de religião diferente a cada dia da semana? Domingo vão à missa, segunda-feira vão à festa na Igreja Messiânica, terça ao culto budista, na quarta assistem a um casamento na sinagoga, na quinta veem novela de televisão, na sexta vão ao terreiro? À parte algumas inevitáveis seitas fanáticas que discriminam tudo aquilo que não é igual a elas, o Brasil é um dos países mais livres do mundo em termos de crença religiosa.

Você nunca quis pertencer a outra religião?

Uma vez, quando eu era ainda bem jovem, pensei em me tornar budista. Estava no sudeste da Ásia, via aqueles monges todos que só tinham uma peça de roupa, uma túnica cor de laranja, uma cuia para comer e beber, um rosário para contar os mantras e as orações. Era a ideia do despojamento total o que mais me atraía.

Verger foi um grande viajante. As imagens mostram etiquetas que ele aplicava nas bagagens. Abaixo, os baús que o acompanharam nas suas andanças pela África. Na página ao lado, outra companheira inseparável: uma máquina de escrever portátil.

Mas a renúncia aos bens do mundo pode esconder uma fuga, uma dificuldade em aceitar e assumir as responsabilidades e os grilhões do mundo e se adaptar a eles.

Sem dúvida. Nada mais difícil, quando se procura um caminho, que descobrir se a força que nos empurra vem do desejo de fugir ou do desejo de buscar. Talvez, em algum nível bem profundo, nem haja qualquer diferença entre esses dois desejos.

 

No sentido de que renunciar ao mundo e buscar a si mesmo são praticamente sinônimos, como parece afirmar o budismo?

No sentido de que existe uma força inexorável e constante que do nascimento à morte nos impele à frente, em direção à descoberta de nós mesmos. Talvez fosse até melhor dizer: em direção à construção de nós mesmos. Tudo que nos acontece, todos os fatos com sentido ou aparentemente sem sentido das nossas vidas, talvez não sejam mais do que ferramentas, recursos, estratégias de que aquela força lança mão para nos empurrar na direção daquela descoberta. Talvez, tanto o desejo de fugir quanto o de buscar sejam duas dessas ferramentas, igualmente importantes. Como disse, naquele nível profundo talvez haja pouca ou nenhuma diferença entre elas.

Nesse ponto, achei que chegara a hora de propor a Pierre Verger a questão que realmente me levara até ele:

Hoje você completa 93 anos, a maior parte deles consagrada ao estudo teórico e prático do candomblé. À parte o interesse cultural, o que todo esse aprendizado significa para você em termos espirituais?

Sua resposta me deixou mais que perplexo:

Hoje você completa 93 anos, a maior parte deles consagrada ao estudo teórico e prático do candomblé. À parte o interesse cultural, o que todo esse aprendizado significa para você em termos espirituais?

Sua resposta me deixou mais que perplexo:

Em termos espirituais? Nada. Não acredito em nada disso. Sou homem de pouca crença. Por natureza pessoal e também por condicionamento cultural, busco muito mais ser um homem de conhecimento.

O maior espetáculo da terra é a manifestação plena da verdade que habita o ser humano

(na foto à esquerda) e o fotógrafo Lamberto Scipioni (na foto à direita) visitaram Pierre Verger no dia em que ele completava 93 anos. Vítima de complicações diabéticas, Verger caminhava com certa dificuldade, mas permanecia lúcido e ativo como sempre. O depoimento que prestou a respeito das razões profundas que o levaram a dedicar quase toda a sua vida à tradição afro-brasileira mostra que ele, na verdade, mais que um cientista etnólogo, um artista fotógrafo, um sacerdote do candomblé, era simplesmente um grande humanista.

 

Nada? Você foi consagrado babalaô, entregou sua cabeça a Xangô, sem acreditar em nada disso?

Verger me fitou longamente, como se quisesse ter certeza de que eu merecia as palavras que vieram a seguir. Mais que as de um cientista etnólogo, um artista fotógrafo, um sacerdote do candomblé, elas foram as palavras de um homem que, no fundo da sua alma, era simplesmente um grande humanista:

Pela manhã, antes de vir me visitar, você não disse que foi ao Pelourinho e comeu um acarajé feito por aquela baiana que monta seu tabuleiro ao lado da Fundação Jorge Amado? Pois bem, aquela mesma baiana, igual a tantas outras, vestida de baiana e coberta de balangandãs, que passa o dia fritando acarajé para ganhar a vida, você sabe o que acontece à noite, quando ela vai para o seu terreiro, quando ela dança e entra em transe ao som dos atabaques e incorpora a Oxum que carrega? Preste atenção: ela deixa de ser uma simples baiana, igual a milhares de outras, para se transformar naquilo que realmente é – uma rainha. Uma rainha, sim, na profundidade do seu ser. Respeitada, tida e havida como tal por toda a comunidade do seu terreiro. E aquele estivador que passa o dia carregando sacos no cais do porto, sabe o que acontece quando ele incorpora no terreiro o Xangô que carrega? Acontece o mesmo: ele se transforma num rei, porque a sua verdadeira natureza é a de um rei. Você me perguntou, eu respondo: foi para isso, sim, que dediquei a maior parte da minha vida. Para contemplar e tentar entender esse espetáculo único, o maior espetáculo da Terra, que é a manifestação plena da verdade que habita o ser humano. A verdade profunda que é representada pelo orixá. E, se mais dez vidas eu tivesse, de bom grado dedicaria todas elas a esse mesmo objetivo.

Não resisti e revidei:

E você mesmo, Verger, descobriu no candomblé a sua verdade profunda?

Gosto de acreditar que estou a caminho dela. Nunca alcancei o mistério daquele estado privilegiado de consciência que a experiência verdadeira do transe acarreta. Tenho muita dificuldade de me entregar. Acho que esse é o preço que pago pela minha educação cartesiana branca e europeia.

Era hora de partir. Estendi-lhe a mão e a força do seu aperto demonstrava ainda todo o poder do seu Xangô. O brilho que percebi nos seus olhos, no entanto, pertencia a outro rei. Era de Oxalá. O orixá branco já chegara para conduzir seu filho ao Orum dos homens de bem.

Texto: luispellegrini@terra.com.br