Viver é uma luta diária. Para os deficientes físicos, uma batalha mais árdua ainda. Embora tenham os seus direitos assegurados por lei, os deficientes precisam lutar para conseguir realizar coisas simples como estudar, trabalhar, cuidar da saúde e ter momentos de lazer.

A advogada paulista Thays Martinez perdeu a visão em decorrência de uma caxumba contraída aos 4 anos de idade. Numa tarde do ano 2000, quando os primeiros pisos táteis começavam a ser instalados na estação Marechal Deodoro do metrô de São Paulo, ela foi impedida de entrar com o seu cão-guia, Boris, treinado nos Estados Unidos, um dos primeiros trazidos para o Brasil. Os funcionários do metrô alegavam que ela podia, mas o cachorro não.

Foi o início de uma batalha judicial de seis anos, que no fi m deu à advogada o direito de acesso irrestrito ao metrô e mudou também as regras da companhia, que passou a aceitar cães-guia na rede. A odisseia está contada no livro Minha Vida com Boris (Editora Globo). Mas ainda existem táxis e restaurantes que impedem a entrada de Diesel, o seu segundo cão-guia, embora muitos cedam depois de uma conversa. Quando o livro foi lançado, Thays exigiu que houvesse uma versão em audiolivro, para que outros deficientes visuais pudessem acompanhar a história.

O cadeirante fluminense Guilherme Meyer Ramalho também sentiu – e ainda sente – na pele as dificuldades que os deficientes físicos enfrentam. A contingência o motivou a fundar um grupo de portadores de necessidades especiais, em 1981, a Associação Niteroiense dos Defi cientes Físicos (Andef), com o propósito de desenvolver ações de garantia e promoção de direitos. A associação gera seus próprios recursos para a manutenção das atividades que beneficiam 600 portadores de deficiência ao mês. Hoje ela virou a maior sede de uma associação do gênero na América Latina e uma das maiores do mundo. Com investimentos da ordem de R$ 5 milhões, a Andef realizou recentemente seu maior projeto, a construção do Centro Social e Esportivo, em Niterói.

Guilherme conta que quando o grupo se formou, há 30 anos, a situação dos deficientes físicos no país era muito precária. De lá para cá, as coisas mudaram, mas ainda resta muito a ser feito. “Ensinar as pessoas a nos respeitar é uma ação prioritária e as conquistas vão acontecendo. O deficiente tem o direito de ir e vir e por isso deve ter plenas condições de se locomover. Reformas de edifícios, rampas de acesso, pisos táteis e outras adaptações não favorecem só os deficientes, mas a população em geral, com grande número de gestantes, obesos e idosos. São medidas que não oneram tanto os cofres públicos e agora, felizmente, o governo está atento a isso”, assegura Guilherme.

Em sua opinião, trata-se de um trabalho gradativo e constante, a ser feito diariamente, com o objetivo de aumentar a qualidade de vida e a dignidade do portador de deficiência. Guilherme está entusiasmado com o novo centro esportivo da Andef, que funcionará como uma das sedes para os Jogos Paralímpicos de 2016. A entidade está se preparando para dar condições de alojamento e práticas esportivas aos atletas deficientes do mundo todo e pretende conseguir parcerias e patrocínios para cumprir a tarefa que lhe foi designada.

O paranaense Flávio Peralta, por sua vez, procurou superar todos os limites quando perdeu os dois braços em 1997, num acidente de trabalho em Londrina. Tinha 29 anos. Ele trabalhava com equipamentos de alta voltagem e recebeu um choque elétrico de 13.800 volts. A partir daí ele passou a ter apenas duas opções na vida: se entregar ou lutar. Resolveu seguir o segundo caminho.

Flávio se engajou em movimentos na luta pelos direitos dos deficientes físicos, montou o site www.amputadosvencedores.com.br, escreveu o livro Amputados Vencedores, no qual conta a sua história, e começou a fazer palestras a respeito de segurança no trabalho e inclusão de deficientes nas empresas. Sua vida seguiu o mesmo rumo de reconstrução, pois se casou com Jane, que perdeu uma das pernas num acidente de moto, e tiveram um filho, Vinícius. Jane também faz palestras e auxilia o marido a criar livros como Os Peraltas e Cartilha sobre Segurança do Trabalho. “Queremos mostrar, com o nosso exemplo, que sempre existem saídas e oportunidades”, insiste.

Flávio viveu o antes e o depois. Quando se tornou um deficiente físico, muitas coisas mudaram e ele teve de lutar para se readequar e voltar a conviver em sociedade. Embora admita a existência de preconceito, quase não o sente. As crianças, por exemplo, em geral são receptivas e curiosas, querendo saber sobre a sua condição. Também procura sensibilizar empresários – como os do ramo turístico e hoteleiro –, pois os deficientes também se constituem num importante nicho de consumidores de produtos e serviços.

Plano ambicioso

No Brasil, até pouco tempo, não se pensava na inclusão do deficiente físico na sociedade e no mercado de trabalho. Mas as coisas começaram a mudar quando o governo instituiu, em 24 de julho de 1991, a Lei de Cotas, de número 8.213, que obriga as empresas a contratar um determinado número de portadores de necessidades especiais, de acordo com a quantidade total de funcionários.

Em 2011, o governo federal resolveu unificar a atuação de diversos órgãos públicos e lançou o Plano Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência, Viver sem Limite, com o objetivo de promover a autonomia e a inclusão do deficiente físico. O plano tem quatro eixos de atuação: acesso à educação, atenção à saúde, inclusão social e acessibilidade. Envolve ações de 15 órgãos federais, Estados e municípios, sob a coordenação da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República e previsão orçamentária de R$ 7,6 bilhões.

Até 2014 a meta é inserir no ensino público 378 mil pessoas, adaptar 42 mil escolas para receber esses alunos, adquirir 2,6 mil ônibus adaptados para o transporte escolar nos municípios, atualizar e implantar salas de aula multifuncionais e contratar tradutores e intérpretes de libras (linguagem de sinais) para escolas.

O Ministério da Educação vai criar o curso superior de Letras em Libras (Língua Brasileira de Sinais, usada por deficientes auditivos) nas universidades. Está prevista também a criação de centros de treinamento para cães-guias em todos os Estados até 2014. O Brasil deve se preparar, pois deverá dar pleno acesso aos deficientes daqui e do exterior aos jogos da Copa do Mundo de 2014 e da Olimpíada de 2016.

Segundo dados do governo, em nove meses de atuação, o Viver sem Limite atingiu diversas metas, entre elas a oferta de 20 mil vagas em cursos de capacitação e o repasse de recursos para projetos piloto de inclusão social, como os Centros-Dia e as Residências Inclusivas, coordenados pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome.

A meta para 2012 na área de educação também já foi atingida, com a oferta de 20 mil vagas no Programa Nacional de Acesso ao Emprego e Ensino Técnico (Pronatec). Outra medida importante foi a desoneração do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) para veículos para pessoas com deficiência e, a partir de janeiro de 2013, do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS).

Sustentabilidade para todos

 

A combativa deputada federal pelo PSDB de São Paulo Mara Gabrilli, 45 anos, eleita com 160 mil votos, ficou tetraplégica em 1995, devido a um acidente de automóvel. Para ela, o balanço divulgado pelo governo não contém informações fundamentais sobre o número de escolas acessíveis e de centros de reabilitação implantados, nem se houve aumento na distribuição de órteses e próteses. Também observa que as melhorias anunciadas, como a oferta de vagas no Pronatec e a isenção do IPI para veículos adaptados, foram resultantes do seu trabalho, frutos de emendas nos projetos do governo, que sequer mencionavam as pessoas com deficiência em sua versão original. A isenção do IPI, por exemplo, é uma luta antiga obtida depois da reunião da deputada com o Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz).

“A inclusão do deficiente é uma das vertentes da sustentabilidade. Para termos vida e políticas sustentáveis, é preciso contemplar a diversidade. As pessoas têm de estar integradas ao mercado de trabalho e exercer a plena cidadania. Não se pode excluir parte da população. Falar em sustentabilidade é falar em qualidade humana”, assegura.

A advogada Thays Martinez também tem dúvidas. “Como vão criar centros de formação de instrutores de cães-guia se não há profissionais habilitados para servir como professores? Deveriam aproveitar os que já existem e que possuem qualificação internacional”, critica.

Thayz também contesta o fato de o projeto determinar que 1,2 milhão de casas do plano Minha Casa Minha Vida sejam adaptadas para cadeirantes, além de prover kits de acessibilidade conforme a deficiência do morador. “Todas as residências deveriam seguir um desenho que atenda essas necessidades especiais, pois um morador pode vir a apresentá-las em certas ocasiões da sua vida, ou no envelhecimento. Fica mais barato e prático construir um imóvel assim do que reformá-lo depois”, observa. O mesmo vale para frotas de ônibus e outros transportes públicos. A seu ver, todos os veículos têm de estar adaptados, pois o deficiente precisa cumprir horários no trabalho e compromissos e não pode ficar esperando que chegue o veículo que dê condições de embarque.

Nem tudo o que aparece como boa intenção acontece na prática. Embora o governo determine que certo número de deficientes tenha acesso aos concursos públicos, a advogada já deixou de prestá-los por não haver no local da prova computadores com softwares especiais para deficientes visuais, em flagrante contrassenso. “A sociedade e os governantes têm de entender que não estão fazendo favores e concessões aos deficientes físicos”, afirma Thayz. “Trata-se de uma questão de direitos que devem ser respeitados.”