Entre os primitivos, o “grande sonho” devia ser contado no círculo dos antigos. Em Roma, os senadores votavam de acordo com o que tinham sonhado à noite. Heródoto conta nas Histórias que Xerxes e Artabano decidiram a guerra contra os gregos a partir de um sonho. São Macário de Ceta, São Francisco de Assis, São Domingos, Santo Hugo, o Cartuxo e São João Bosco, todos fundadores de ordens, seguiram à risca as visões do inconsciente deles.

Mas hoje, as coisas se passam diferentemente. Os grandes homens não comunicam sonhos desse gênero. Podemos imaginar que Stálin, Churchill, De Gaulle ou Kennedy tiveram muitas vezes sonhos proféticos. Sabemos, por exemplo, que Hitler sonhava muito. Somente Bismarck, o Chanceler de Ferro, certa vez narrou um sonho. E foi esse sonho que o levou a declarar guerra à Áustria, porque acreditava na vitória. O dr. Hans Sachs, que contou o sonho de Bismarck a Freud, deu uma interpretação erótica, vendo nele uma fantasia de masturbações.

Mas não existe apenas a interpretação sexual. Em tais sonhos, é preciso pesquisar em duas direções: a causal, que se liga frequentemente à infância e a desejos sexuais infantis, e a prospectiva ou motora, que é a via do futuro. Bismarck interpretou o sonho dele num sentido motor, e não causal. Ele não era neurótico e tinha pouca necessidade de conhecer as causas infantis de suas fantasias oníricas.

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Sonho provocado

Existe entre os muçulmanos um rito chamado istiqhâra: o homem vai dormir depois de ter rezado uma prece para ter um sonho capaz de ajudá-lo a resolver um problema. Esse ritual não é de origem muçulmana. É o resíduo islamizado de um costume mais antigo. Do sexto século antes de nossa era até o sexto século desta era, nos templos gregos e egípcios praticava-se a incubação. Milhares de homens iam dormir em lugares sagrados para ter um sonho esclarecedor. A incubação antiga era a herdeira do sonho provocado dos primitivos, e se prolongou mesmo nas igrejas cristãs dos primeiros tempos, até a condenação do estudo e da utilização dos sonhos.

Desde que diminuiu a pressão dos tabus medievais, vários autores se interessaram pelo sonho, tentando provocá-lo. Alguns românticos acharam inclusive que poderiam dirigi-lo. Hervey de Saint-Denys, numa obra famosa, Os Sonhos e os Meios de Dirigi-los, reconhecia contudo a impossibilidade disso. Admitia, no máximo, a introdução de algumas ideias e imagens que, tomadas pelo inconsciente, aparecem num contexto imprevisto.

O dr. Dessoile, célebre psicoterapeuta, chegou a conclusões análogas. Se tocarmos a mesma campainha, durante o sono de três pessoas, o som vai ser um agente onírico diferente para cada uma dessas pessoas. Da mesma forma, o inconsciente prova a sua autonomia em todos os casos onde é provocado.

Diálogo do consciente com o inconsciente

Na técnica do sonho provocado, o eu consciente se concentra, antes de dormir, no assunto para o qual deseja uma resposta ou esclarecimento. Isso é feito mediante uma operação de esvaziamento mental. Elimina-se qualquer preocupação e liga-se a questão do sonho a uma cadeia de imagens ou pensamentos já vista em outros sonhos. É raro que durante a noite não apareça a resposta desejada.

O processo se relaciona ao da incubação antiga ou ao do istiqhâra, mas não possui nada de metafísico ou religioso. Esse diálogo que o homem antigo procurava estabelecer com o deus, o santo ou o profeta, através do sonho, pode ser visto pelo homem moderno como realmente é. Um diálogo entre duas instâncias fundamentais da personalidade, o consciente e o inconsciente, sua face diurna e sua face noturna. Nesse sentido, o sonho pode se integrar na vida cotidiana e não ser usado apenas num sentido terapêutico, como a psicanálise acha.

O sonho provocado ou o “diálogo com o inconsciente” permite essa integração sob uma forma sistemática. De qualquer modo – espontâneo ou provocado –, o sonho não é somente a satisfação de um desejo, como pensava Freud, mas passa a ser a expressão de um desejo que a realidade deve ou pode satisfazer.

José interpreta o sonho do faraó, em ilustração do arquivo de Philip De Vere. Crédito: Philip De Vere/Wikimedia
Uma utilização cultural e humana

É correto dar ao inconsciente tanta atenção? Os conteúdos do inconsciente possuem um valor real para o homem maduro e equilibrado? Os seus valores são insignificantes ou são perigosos e destruidores da vida social? De que serviria obedecer a sonhos motores se estes só conduzem à morte, à violência, à promiscuidade sexual? O freudismo não ensinou que o inconsciente é feito de resíduos esquecidos e reprimidos da vida acordada e que o incesto, a sodomia, o adultério são os desejos mais presentes no inconsciente?

A resposta a tudo isso depende da ideia que se faça da natureza do inconsciente. Freud não afirmou que o sonho só tem conteúdos sexuais, embora dissesse que a maior parte das neuroses tem uma origem sexual inconsciente. Ele reconheceu que no sonho encontramos toda espécie de impulsos, como a fome, a sede, a ânsia de liberdade, a cobiça, o egoísmo, a impaciência, o comodismo, etc. Ele mesmo admitiu a possibilidade de sonhos telepáticos, o que C. G. Jung confirmou. Lembramos a proposição de Bergson, que definia o sonho como “a vida mental inteira, sem a tensão, o esforço e o movimento corporal”. De maneira que podemos encontrar, no sonho, lembranças, raciocínios, intuições, combinações de ideias, discursos e cálculos.

Assim, o sonho é suscetível de uma utilização cultural e humana da mais alta importância. Sonhos dos quais a Bíblia fala, como os que se encontram na origem das grandes religiões, ou como o de Bismarck, deviam ser suficientes para nos convencer. Os famosos sonhos de Descartes tiveram influência decisiva no desenvolvimento da sua filosofia. Há mil exemplos de obras capitais para as quais os sonhos foram o ponto de partida. Não podemos ignorar estudos como os do fisiólogo Burdach ou do químico Kekulé, que encontrou no sonho o caráter cíclico da estrutura molecular do benzeno. Ou o físico Niels Bohr, que, de um sonho, tirou o essencial da teoria sobre a nuvem atômica. Vários matemáticos obtiveram em sonho a solução de problemas que não haviam resolvido em estado de vigília.

Matriz da vida psíquica

É, portanto, difícil ver o inconsciente do modo como Freud o fez, como se fosse constituído de resíduos e repressões sexuais da vida desperta. Se fosse assim, só poderíamos esperar do sonho subprodutos dessa vida. Fosse qual fosse o seu interesse terapêutico, o interesse cultural seria pequeno. Jung nos ajuda, considerando o inconsciente não somente como o depósito da vida desperta, mas como a matriz da nossa vida psíquica.

Não foi somente acrescentando à noção freudiana do inconsciente individual a do inconsciente coletivo que Jung permitiu essa retomada, esse alargamento. O inconsciente coletivo poderia ser também apenas o depósito da vida coletiva, da mesma forma que o inconsciente individual é o depósito da vida do indivíduo. A abundância maior de lembranças e de materiais não mudaria a sua natureza.

Nessa perspectiva, não é a vida consciente que criou o inconsciente pela rejeição ou repressão dos seus elementos impróprios. Não se trata de estudar somente a parte do inconsciente de que Freud se ocupou. É o inconsciente que possui a anterioridade histórica e acabou por criar a consciência como um produto aperfeiçoado e frágil da evolução.

“O Sonho do Cavaleiro”, de Antonio de Pereda (1611-1678). Crédito: Real Academia de Bellas Artes de San Fernando/Wikimedia
As fontes do sonho

Na sua autobiografia, Memórias, Sonhos, Reflexões, Jung citou um sonho absorvente no qual teve a revelação concreta da relação do consciente e do inconsciente. Via, em frente a uma capela, sentado no chão, na posição de lótus, um iogue em profunda meditação. Observando-o de mais perto, descobriu que o rosto do iogue era o seu, de maneira que, afastando-se cheio de medo, acordou com esse pensamento: “Ah! Então é ele que me medita. Teve um sonho e eu sou esse sonho”. E soube logo que o dia em que o iogue acordasse, ele não existiria mais.

O indivíduo é, de certa forma, o sonho da espécie, o consciente, o sonho do inconsciente, e é esse último o sonho que é preciso realizar. Não há nada de místico, trata-se da tomada de consciência do indivíduo com relação à espécie e da evolução da espécie no indivíduo e pelo indivíduo, que constitui o ferro da lança da espécie.

No século 19, Nietzsche – em quem Freud saudou o precursor da psicanálise – havia reagido contra a concepção ingênua que via no sonho somente uma previsão. Ele mostrou, em primeiro lugar, que as fontes dos sonhos se encontram ao mesmo tempo, na infância do indivíduo e da espécie inteira.

Mas, depois que a psicologia das profundezas começou a exploração das fontes do sonho, começamos a discernir que nele não nos limitamos a reviver o passado e a repeti-lo, mas encontramos as mesmas forças dinâmicas que construíram esse passado, o que nos permite edificar o futuro. Assim, podemos entender melhor essa misteriosa proposição de Heráclito, segundo a qual, “no seu sono, os homens trabalham e colaboram nos acontecimentos do universo”.

Estado intermediário

Apesar de Freud não dar grande importância aos sonhos do despertar, adquiriu convicção de que é em tais instantes que se produzem os sonhos mais ricos, os mais perturbadores para o destino do indivíduo. Por quê? Porque é aí que se juntam, numa síntese inesperada, os pensamentos da vigília e os pensamentos da noite, as aspirações conscientes e as aspirações inconscientes.

No seu De Mysterlis Aegyptorum, Jâmblico já assegurava que os sonhos divinos se produzem num estado intermediário entre o sono e a vigília, estado no qual podemos até ouvir vozes. Da mesma forma, o Spandahârikâ, de Vasugupta, texto sânscrito do século 10, notava que o iogue obtinha a realização dos seus desejos quando se encontrava “no curso do sonho, na ligação da vigília e do sono”.

Admitimos, com Freud, que do ponto de vista terapêutico, os sonhos mais significativos são os que estão mais distantes da vigília, mas consideramos também que o estado descrito por Jâmblico e Vasugupta é aquele em que se elaboram as mais altas e mais ricas fantasias imaginárias, uma vez que elas resultam da junção de impulsos inconscientes e das aquisições da consciência.

“Paisagem com o Sonho de Jacó”, de Michael Willmann (1630–1706). Crédito: Staatliche Museen zu Berlin, Gemäldegalerie/Wikimedia
Realidade em devir

Resumindo, é nesse ponto que existem as melhores chances de uma representação de si mesmo, ou, pelo menos, uma indicação para o crescimento de si, isto é, para o que é permitido chamar a expressão total do indivíduo nas suas relações com o outro e o universo.

O estudo dos sonhos leva a uma última consideração, já familiar no Extremo Oriente, mas ainda estranha no Ocidente. Trata-se da natureza mesma da realidade. Freud abordou essa questão, de uma maneira cujo simplismo deprime um pouco: opondo o princípio do prazer ao princípio da realidade, que seria o da necessidade. Para Freud, o sonho, exprimindo desejos infantis e arcaicos, deve necessariamente se opor aos interesses sociais que representam a realidade.

Freud não discerniu o caráter principalmente germinal, prospectivo, formativo do sonho, que faz dele não o oposto da realidade, mas a realidade em devir (vir a ser). Para qualquer um que tenha estudado um pouco os sonhos, nada é mais estúpido que a expressão: não é senão um sonho. Voamos de avião porque o homem sonhou que voava. Vamos para a Lua porque o homem sonhou com a Lua.

A vida seria um sonho

Todo sonho é uma realidade em potencial e os indivíduos ou povos que não têm mais devir já são mortos-vivos. Os orientais têm frequentemente observado que despertamos de um sonho no interior de outro sonho, e assim a própria vida poderia ser um sonho do qual acordaríamos um dia. Calderón de La Barca cantou isso no Ocidente, e Shakespeare fez o mesmo depois dele.

Na China, Tchouang-Tsen formulou essa relatividade no seu aforisma: “Antigamente, numa noite fui uma borboleta voltejando, contente da sua sorte. Depois, despertei, sendo Tchouang-Tsen. Quem sou na realidade? Uma borboleta que sonha que é Tchouang-Tsen ou Tchouang-Tsen imaginando que foi uma borboleta?”

Não decidamos nada, observemos somente que, no sonho, toda metamorfose é possível. Não é somente porque dormimos que nossos princípios de espaço, tempo ou casualidade são postos em questão. No sono, encontramos também os princípios que os constituem.

Não sinto nenhuma melancolia em pensar que a vida é um sonho, porque o sonho é uma realidade. Essa realidade é a da plasticidade da vida. Marx e Rimbaud não nos disseram que importava modificar a sociedade e a vida? Pois bem! O sonho ensina por que via podemos fazê-lo. O sonho é o grão que sonha com a espiga, o antropoide que sonha com o homem, o homem que sonha com o que lhe sucederá.

Mar: lugar cósmico, anônimo, de onde toda a vida saiu. Crédito: Piqsels

Interpretação dos sonhos

Não existe explicação mecânica dos símbolos e arquétipos do sonho. Um mesmo símbolo tem significações diferentes para cada indivíduo e para cada fase. É nesse sentido que as chaves dos sonhos são falsas. Essas mesmas chaves poderão ser úteis na medida em que rejeitemos sua explicação mecânica e coloquemos a imagem no contexto individual onde apareceu, compreendendo então que todos os símbolos são polivalentes tanto no que se refere à sexualidade como à metafísica. O símbolo exprime as contradições do ser e sugere como uma mesma força pode se traduzir em níveis diferentes ou encontrar uma via intermediária na qual essas contradições se resolvam. Freud, Jung, Mircea Eliade, Gaston Bachelard, Julius Evola reuniram materiais para a interpretação dos símbolos e dos arquétipos que, hoje, são imprescindíveis para que um homem honesto possa dedicar-se à interpretação dos seus sonhos.

Sonhar com a casa

Para Freud, a casa possui uma significação feminina. As fachadas representam corpos humanos de pé e os sonhos de perseguição através de quartos devem ser entendidos tais como os sonhos de casas fechadas. É difícil permanecer com tais pontos de vista. Entre a casa e o homem se produziu, no curso das idades, uma tal identificação que se a “casa-corpo” se revela compreensível, a “casa-alma” também. O sonho da casa contém o conjunto dos sentimentos que, desde tempos imemoráveis, o homem pode ter das suas relações com os seus semelhantes, sua família, ele mesmo, o mundo. É ao abrigo das fachadas que a vida familiar, íntima, se desenvolve. Por causa disso, na casa do sonho, cada peça se reveste de um sentido correspondente à sua aplicação real: a simbologia do porão não é a mesma do sótão, a simbologia da cozinha, a do salão ou do quarto de dormir. A casa se opõe àquele que, no sonho, pode representar o indivíduo social ou antissocial, nômade ou sem raízes. Sua carga é de intimidade, representação social e enraizamento.

Sonhar com o mar

No Simbolismo dos Contos de Fadas, Loefler Delachaux observou a relação inversa que, em algumas línguas, existe entre as iniciais das palavras mar e mãe. Assim, o M maiúsculo e o W (M invertido) formam, em inglês, o início de mother e water (mãe e água), da mesma forma que, em alemão, o M e o W são as primeiras de Mutter e Wasser. Em francês, a assonância entre mer e mère é significativa por si mesma. Mas o mar não pode ser reduzido a mãe, da mesma forma que o diabo não pode também ser reduzido ao pai, mesmo que sua aparição em sonho leve a lembranças de infância ou passado. O mar é um lugar cósmico, anônimo, de onde toda vida saiu, e não somente a vida humana Por isso, Jung via no mar o símbolo por excelência do inconsciente coletivo, isto é, do que, nos nossos sonhos, ultrapassa o mundo da infância e das fantasias do retorno ao meio materno, para se juntar às estruturas pré-uterinas comuns à espécie e a muitas formas de vida.

Sonhar com o diabo

O demônio dos sonhos corresponde sempre a um sofrimento, sentimento de culpabilidade ou maldição. Se evoca a ideia de uma pessoa conhecida, é porque existe entre essa pessoa e o sonhador uma incompatibilidade momentânea. Os freudianos veem no diabo uma imagem do pai terrível e libidinoso. Isso se deve à incompatibilidade que geralmente existe entre o adolescente e o pai (este representando tudo o que é proibido, o que não podemos fazer). Sabemos que o diabo não é somente o maldito, mas é também o tentador, o sedutor. A imagem do diabo possui uma relação com o pai, constitui uma imagem negativa, mas não se reduz somente a isso.

Sonhar com a morte de pessoas queridas

Tal visão significa para Freud que, em criança, desejamos a morte dessas pessoas. Certamente, tal reaparição infantil não implica que o sonhador deseje ainda essa morte, na sua vida atual. Na criança, o desejo de morte não corresponde ao de um adulto consciente. A criança não “realiza” a morte, identificada a uma simples separação. Significa a eliminação do que a incomoda, sem que tal eliminação requeira uma destruição física. Freud crê que o sonho de morte tem, frequentemente, relação com o parente do mesmo sexo do sonhador, o que se relaciona com a sua teoria do complexo de Édipo, segundo a qual todo filho acabaria por desejar a morte do pai, a fim de poder possuir livremente sua mãe. Sem querer discutir tal teoria, hoje cada vez mais contestada, é necessário, porém, observar que vários filhos sonham com a morte da mãe, várias filhas com a do pai, da mesma forma que sonhamos com a morte de amigos dos quais não possuímos nenhuma lembrança de infância. Nesse último caso, é necessário sempre reservar a hipótese de identificações parentais; a interpretação puramente infantil se revela insuficiente. Não se pode mais conservar a ideia, salvo em caso excepcional, de que o sonho de morte possa ser uma premonição da morte real. Milhares de sonhos de morte não corresponderam a uma morte real. Trata-se, portanto, da dramatização de um desejo de separação ou de fim, em relação com a pessoa sonhada. É um estado de alma, um sentimento, uma obrigação em que alguma coisa em nós quer o desaparecimento.

Sonhar que estamos nus

Para Freud, os sonhos de nudez são sonhos de exibição que encontram sua origem no prazer da criança em se mostrar nua e descobrir seus órgãos genitais, apesar da restrição dos parentes. Entretanto, existe sonho de nudez ao qual nenhum sentimento de vergonha ou de confusão está ligado. Lá onde a nudez é socialmente admitida ou tolerada, em certas circunstâncias sociais, não pode ser interpretada em termos de exibição. Devia ser o caso entre muitos dos primitivos, ou em Esparta, onde as jovens podiam se mostrar nuas em várias ocasiões na vida ordinária, ou em alguns países nórdicos, onde o costume de se banhar nu não cessou de ser admitido. A interpretação freudiana só é válida, portanto, na área judaico-cristã, onde os tabus bíblicos relativos à nudez tiveram tempo de se implantar. Mas, até dentro dessa tradição, a nudez não vale somente como exibição. O desejo de estar nu corresponde a um gosto de liberdade infantil e a uma nostalgia do estado adâmico antes da queda. Trata-se de uma intuição deformada ou degradada do homem original, paradisíaco, da sua simplicidade e veracidade.

A antiguidade conhecia uma nudez ritual. Nos mistérios gregos, as pessoas subiam de grau à medida que tiravam, progressivamente, suas roupas; a visão da nudez integral correspondia ao grau supremo da iniciação. Tal visão podia ser fatal para quem não estava preparado: nos ritos da Grande Deusa, as jovens levantavam seu vestido e mostravam o sexo, mais para provocar espanto do que por exibição. No sonho de nudez existe, portanto, uma apreensão confusa do original e abissal, da verdade mais despojada do homem e do cosmos, verdade cuja aproximação evoca as grandes inadaptações sociais e uma forma de “loucura” que muitos não suportam. O sentido da exibição é superficial e local: o sonho da nudez revela um caráter iniciático.