O melhor lugar do mundo é aqui e agora”, canta o compositor Gilberto Gil, citando uma afirmação comum ao budismo, à gestalt-terapia e a tantas outras escolas de conhecimento. Essa chave da felicidade parece simples – mas, para a maioria das pessoas, viver o aqui e o agora é um dos problemas mais comuns. Em geral, elas abrem demasiado espaço para remoer experiências negativas passadas ou se atormentar com possibilidades sombrias de futuro.

Os segredos dessa dificuldade de viver no presente começam a ser explicados a partir de algumas descobertas recentes da neurociência. Em 2002, pesquisadores da Universidade Stanford já haviam descoberto um detalhe curioso em regiões localizadas nos lobos frontais, parietais e temporais do cérebro.

Essas áreas, denominadas rede de modo de ausência (em inglês, network default mode), aparecem escuras nas neuroimagens quando a pessoa começa a fazer uma tarefa como somar números, atender o telefone ou identificar rostos, mas se tornam mais ativas logo que essa atividade é encerrada.

No início de 2007, psicólogos e neurocientistas das universidades de Aberdeen (Grã-Bretanha) e de Harvard e do Dartmouth College (Estados Unidos) chegaram a uma conclusão sobre o que significa esse funcionamento acelerado durante o descanso: trata-se do devaneio, a habilidade de sonhar acordado.

Viagem no tempo

“O devaneio mental tem deixado os estudiosos perplexos por séculos, tanto em termos de sua base neural quanto de seu significado psicológico”, observa Neil Macrae, titular da cadeira de psicologia da Universidade de Aberdeen. Ele sugere uma finalidade para tal mecanismo: durante esse período, a mente viajaria no tempo, repassando os fatos ocorridos ou vislumbrando possíveis experiências futuras.

Viagem no tempo? A ideia entusiasma Daniel Gilbert e Randy Buckner, professores de Harvard. Ambos observam que essa característica mental é única na Terra: “Nossa mente pode se mover no tempo na direção e velocidade que bem entender. Nossa habilidade de fechar os olhos e imaginar os prazeres de um jogo decisivo do campeonato ou lembrar os excessos da ceia de ano-novo é um desenvolvimento evolutivo bem recente, e nosso talento para acionar essa habilidade não tem paralelo no reino animal.”

Danos nessa máquina do tempo, observam eles, significam em geral ficar presos no presente: “A doença de Alzheimer, por exemplo, ataca especificamente a parte escura do córtex, encalhando muitas de suas vítimas num interminável agora, no qual não conseguem lembrar seu ontem nem vislumbrar seu amanhã.”

Por que a evolução teria munido nossos cérebros desse instrumento? “Uma possibilidade é que o devaneio, como uma forma de viagem no tempo mental espontânea, refletindo sobre o passado, planejando o futuro, empresta um senso de coerência às experiências passadas, presentes e futuras do indivíduo, capacitando-o a fazer escolhas efetivas e tomar decisões”, sugere Macrae.

Sem custo adicional

A ideia é explorada por Gilbert e Buckner: “Andar por aí expõe os organismos ao perigo, portanto eles deveriam, como regra, ter o mínimo de experiências possível e aprender o máximo que pudessem com elas.” Embora a lição de algumas seja imediata (por exemplo, não tocar numa panela quente ou não deixar sabão entrar nos olhos durante o banho), outras exigem um tempo maior para assimilação (como perceber que a razão do mau humor da esposa é ter esquecido de elogiar seu novo corte de cabelo). “A viagem no tempo nos permite pagar por uma experiência uma vez e então tê-la mais e mais vezes sem custo adicional, aprendendo novas lições a partir de cada repetição”, comentam.

Os professores de Harvard lembram que animais, como nós, aprendem por tentativa e erro, e o grau de sua esperteza pode ser medido pelo número de experiências de que precisam para aprender uma ideia. Mas o ser humano levou esse mecanismo a uma sofisticação inédita.

Outra vantagem: ao ter a capacidade de viajar mentalmente para o futuro, podemos nos dar ao luxo de dispensar por completo certas experiências. “Exatamente como os pilotos treinam voar em simuladores de voo, o restante de nós treina viver em simuladores de vida, e nossa habilidade para simular futuras rotas de ação e prever as suas conseqüências nos capacita a aprender com erros sem fazê-los”, observam.

De fato, ninguém precisa aprender a criar baratas para constatar que isso é totalmente dispensável. É o mesmo processo que evita que, em princípio, xinguemos o chefe ou cometamos uma infração de trânsito na estrada diante de um policial rodoviário. Podemos até desprezar os alertas emitidos pelo cérebro nessas circunstâncias, mas, se esses atos trazem conseqüências negativas, não devemos nos surpreender com isso.

Normalidade estatística

Outro detalhe curioso do mecanismo cerebral de devanear está no fato de que não é qualquer futuro que ele consegue visitar, mas apenas aqueles que protagonizamos. Pensar se a bolsa de valores estará em alta daqui a um mês ou quem vencerá as próximas eleições presidenciais não ativa nossa rede de modo de ausência. São outras partes do cérebro que buscam responder a perguntas como essas.

Mas é o tempo que passamos em devaneios que mais chama a atenção. Segundo os estudos, o normal, estatisticamente, é mesmo devanear, em vez de estar com os pés no aqui e agora. “As pessoas tipicamente superestimam a frequência com que estão no presente porque raramente notam quando saem dele”, afirmam Gilbert e Buckner.

“É apenas quando o ambiente exige nossa atenção – um cão late, uma criança chora, um telefone toca – que nossas máquinas do tempo mentais se desligam e nos depositam no aqui e agora com um solavanco.” Basta resolver essa situação – o “tempo suficiente para apanhar uma mensagem”, salientam os professores – para voltar a passear fora do presente.

Nosso bem-estar psicofísico, portanto, não está apenas em fazer do aqui e agora o melhor lugar do mundo. Temos de expandi-lo para os períodos nos quais nossa mente mais permanece em navegação – o passado e o futuro – e neutralizar a carga negativa das experiências que nos incomodam, revendo-as, por exemplo, sob um ângulo de aprendizado e de progresso interior. É, de certo modo, o desafio de uma vida – mas, como revelam aquelas escolas de sabedoria citadas no início, um desafio plenamente superável.