Acreditando nos avanços tecnológicos de meados do século XIX, o metódico milionário Phileas Fogg aposta com os amigos que é capaz de dar uma Volta ao Mundo em 80 Dias, no clássico de Júlio Verne. Desde o lançamento desse livro, em 1873, viagens desafiadoras mexem com o imaginário coletivo. Mas, hoje, contando com muitas mais evoluções nos transportes e na tecnologia, os aventureiros do século XXI já não se preocupam em correr atrás do relógio, como Mr. Fogg. Ao contrário, preferem permanecer o máximo de tempo possível no caminho. Muitos fazem dessa proposta um estilo de vida, como a família Zapp.

Catorze anos e quatro filhos atrás, o casal argentino Candelaria e Herman Zapp decidiu viajar de Buenos Aires ao Alasca por terra. Na véspera da data combinada para a partida, Herman não resistiu a uma oferta tentadora e comprou um calhambeque Graham-Paige de 1928. Quando viu a relíquia, a esposa hesitou. Achou que desperdiçariam muito tempo consertando o veículo. “Mas é fácil me convencer, porque eu gosto de aventura”, lembra, rindo. Partiram, deixando para trás empregos, casa, parentes, amigos e comodidades de uma vida estável e tradicional. Candelaria brinca que se, em 2000, com quatro mil dólares no bolso, tivessem lhe dito que passaria mais de uma década viajando e teria quatro filhos no caminho – apesar de ter ficado sem dinheiro já no sexto mês após a partida –, certamente não teria colocado o nariz para fora da porta. Como todo ser humano, ela sente o medo natural de sair de sua zona de conforto. 

De acordo com Herman, o fato de terem ficado sem um centavo no meio do caminho foi a melhor coisa que lhes aconteceu. Na visão dele, naquela ocasião, eles evoluíram de meros turistas para “viageiros” (para usar um termo sem a conotação delirante que “viajante” costuma dar). “A gente se abriu muito mais para as outras pessoas”, conta. 

Ao longo de todo esse tempo na estrada, o automóvel, ao contrário de trazer problemas, abriu portas para os Zapp e muitos sorrisos nos locais visitados, além de turbinar o marketing da família. Macondo Cambalache, como é chamado o automóvel, cresceu com os Zapp. O casal teve quatro filhos, cada um em um lugar diferente do globo. “Tivemos que aumentar o carro em 40 centímetros. Pusemos dois lugares a mais no fundo, um de frente pro outro”, explica Candelaria. 

Quando não são hospedados por moradores das cidades por onde passam, o quarto das crianças é uma barraca armada no rack superior. Os pais dormem dentro do automóvel, nos bancos adaptados para virar cama. Duas malas funcionam de armário, cada uma serve três pessoas. Um baú antigo, acoplado na traseira do carro, é a despensa. “Nos centros urbanos estocamos guloseimas que não encontramos em todos os lugares. No meio das savanas da África, onde estamos atualmente, comemos um pacote de bolacha Oreo, que tínhamos no baú mágico”, conta ela. 

Já quem escolhe percorrer o mundo por via marítima, como Cecília e Fábio Passos Jorge, também tem a vantagem de se sentir sempre em casa. “Mesmo do outro lado do mundo, durmo na minha cama e uso a minha faca de cozinha, por exemplo”, destaca Cecília. O Planckton, o veleiro de 43 pés do casal, oferece mais comodidades do que Macondo Cambalache. São três cabines, co zinha, sala, banheiro
e “uma varanda, com vista maravilhosa”, ressalta.

O relacionamento deles já nasceu em alto mar, quando Cecília e alguns amigos contrataram Fábio  para navegar de Ilhabela a Abrolhos. Fábio já morava no barco havia dois anos. “Pra mim foi muito fácil me mudar. Vendi tudo o que tinha em casa, nove anos atrás, e fui. Estava apaixonada pelo Fábio e pela vida no barco”, lembra. 

Com a chegada do filho Igor, a família diminuiu o ritmo. Em 2014, decidiram desembarcar e colocar o pequeno, aos seis anos, na escola. Eles estão encarando isso como um ‘período sabático’ do barco. Mas querem seguir viagem. A dificuldade de Cecília tem sido maior para se readaptar à terra firme do que para mudar para o barco “Por que precisamos de tantos sapatos?”, questiona. 

Na ponta do lápis

Embora o termo “aventureiro” seja em geral associado a pessoas impulsivas e despreparadas, por trás de uma verdadeira aventura naturalmente há mais tempo de planejamento do que de viagem “Planilha é nossa especialidade”, garante Cecília. Tudo o que entra no Planckton entra também para uma planilha, com informações sobre quantidade e localização. Seja material de limpeza, peça de reposição do motor ou comida. “Não dá para ficar abrindo todos os compartimentos do barco atrás de uma lata de ervilha.” 

Ótimo exemplo de aventureiro planejador, Rodrigo Fiúza leva de um ano e meio a dois anos preparando uma viagem. Com a proposta em mãos, corre atrás de patrocínio. “O planejamento da viagem é fundamental para que ela se torne vendável”, explica o “autônomo da aventura” ou “aventureiro profissional”, como gosta de se definir.

Fiúza começou muito cedo nessa área, aos 24 anos. Tomou a contramão da maioria que começa a viver aos 60 anos, depois de uma vida de trabalho tradicional. “Eu vivo de aventura”, afirma, “mas sei que é para poucos”. Ele gosta de ressaltar que, ao contrário do que se pensa, esse modo de vida demanda muito mais disciplina do que quando se tem carteira assinada.

Fiúza já contabiliza 280 mil quilômetros rodados em moto. Primeiro, em 2000, foi de Belo Horizonte (MG) a Ushuaia (Argentina). Depois seguiu de BH para o norte, até o Alasca. Circulou pelo Oriente Médio, em plena Guerra do Iraque, numa 125 cilindradas (a mesma usada por motoboys). Então, deu a volta ao mundo pelo Hemisfério Norte numa 250 cilindradas. Sua mais recente aventura foi a África. Seu próximo destino será a Oceania. Assim, deverá se tornar a primeira pessoa do mundo a percorrer os cinco continentes sobre duas rodas motorizadas.

“No início, minha família me achou doido. Meu pai suspendeu o suporte financeiro que me dava. Tive que acreditar no meu sonho e seguir em frente”, lembra. Aos poucos foi conseguindo a aprovação e a admiração de todos. “A aventura deixou de ser coisa de doido, agora é sinônimo de qualidade de vida. Hoje em dia, existem melhores condições para as pessoas saírem se aventurando”, acredita. 

Pela experiência de Felipe Baenninger, no começo ninguém entende uma decisão dessas. “Nem você mesmo entende como uma viagem longa e alternativa vai funcionar na sua vida”, comenta o fotógrafo que desenvolve o Projeto Transite, documentário fotográfico do uso da bicicleta no Brasil. 

Há 11 mil quilômetros Felipe dorme em barraca, em rede, na casa de hospedeiros ou em praças, mas garante que não sente falta de nada. “Quem não tem nada tem tudo. Às vezes dá uma solidão, mas a solidão é uma oportunidade de ficar sozinho. Ficar sozinho é bom, eu sou uma pessoa muito agradável”, solta uma risada. Baenninger confessa que a saudade da família aperta um pouco, mas a tecnologia ajuda a manter contato, mesmo onde está agora, em Manaus, na Amazônia.

O desejo de investir tempo e dinheiro nessa experiência surgiu da insatisfação que sentia com o status quo. Profissionalmente, Baenninger já tinha provado muitos ambientes da fotografia – no jornalismo, na publicidade, em tratamento de imagem –, mas a rigidez da vida corporativa não lhe agradou. Ficou dois anos se preparando para iniciar o Projeto Transite, viabilizado por meio de financiamento coletivo na internet (crowdfunding). Mas também colocou muito dinheiro do próprio bolso. “Acho que projetos assim precisam ter múltiplas frentes de captação, para ter mais chances de seguir em frente.” 

Cabe no bolso?

Uma máxima que só a experiência ensina é que os gastos desse estilo alternativo de vida ficam abaixo dos custos de uma vida tradicional e muito abaixo das viagens de férias. Em geral, as pessoas projetam despesas de viagem baseadas em gastos durante folgas, quando pagam excursões, hotel, transporte e refeições fora. É um erro. “A gente consegue ser feliz com muito pouco e gastamos menos viajando do que ancorados. E menos ainda do que em terra firme, como estamos agora”, revela Cecília Passos Jorge. Para o casal, os recursos para pagar as contas vêm dos passeios e dos cursos de vela oferecidos no Planckton, sempre em águas brasileiras. 

“É possível se sustentar, mas não espere ganhar dinheiro com esse estilo de vida”, alerta Johnny Mazzilli, 49 anos, que por muito tempo viveu de viajar. Sendo fã da PLANETA, é bem provável que o leitor já tenha viajado algumas vezes com ele por meio das reportagens free-lance que o autor publicou na revista nos últimos anos. O “fotógrafo-escrivinhador”, como se define, estima ter percorrido cerca de 900 mil quilômetros pelo mundo. Mazzilli optou por uma vida de mais experiências e menos posses. “Abri mão de dinheiro e de tudo o que poderia comprar com ele. Mas não me arrependo, sou um privilegiado”. Passar cinco mevses por ano nos mais diversos cantos do mundo já foi comum para o colaborador da PLANETA. 

Cada viagem tem uma arquitetura de custos. Às vezes são press trips (grupos de jornalistas levados a um destino ou atração para promover o lugar), às vezes empreendimentos baseados em patrocínios ou permutas, e também há vezes em que Mazzilli precisa investir do próprio bolso. Como contrapartida, o autor oferece as reportagens com distintos enfoques, conforme a publicação visada. Uma dificuldade a superar (que ele não menciona) é encontrar um editor exigente da PLANETA pela frente.

“De cada viagem, eu costumava tirar de três a cinco mil reais com a venda de reportagens, ao longo de um ano. Mas, atualmente, os números não estão fechando”, explica. Estar fora de casa está se tornando  um mau negócio. É mais fácil ganhar dinheiro em São Paulo. Embora existam meios de custeio, os veículos para a publicação diminuíram e o mercado jornalístico já não paga como antes. Além disso, o viageiro diz estar cansado de viajar e quer ficar mais perto do quarto filho, de um ano e meio. 

Mazzilli lembra que durante uma viagem de 30 dias pela Noruega, Dinamarca, Ilhas Faroe, Suécia e Finlândia, tomou 16 voos, cinco trens, dez ônibus, quase 20 ferries e alugou quatro carros. “Coordenei os custeios com cada um dos países. Deu tudo supercerto. Mas foi muito cansativo ficar o tempo todo de olho no mapa. Nunca mais”, desabafa.

Marcha lenta

Este é outro ponto pacífico entre os aventureiros do século XXI: seguir um cronograma rigoroso acaba soterrando grandes momentos dessas empreitadas. Felipe Baenninger ainda tem um ano de Projeto Transite pela frente. Apesar de ter metas a cumprir, já descobriu que o melhor é viver um dia após o outro. 

Quando seguiu um plano muito à risca, começou a sentir que algo não andava bem. Ao permitir-se mais flexibilidade e tempo, pôde viver experiências únicas. “Neste mundo, em que insistem em nos dizer que tudo está horrível e que um bandido vai nos pega na primeira esquina, viajar te faz retomar a fé na humanidade. As mesmas mentes que destroem são as que constroem e ajudam umas às outras”, filosofa.

“Procuramos não ter compromissos. Se não, ficamos amarrados e perdemos as surpresas do caminho”, engrossam o coro Candelaria e Herman Zapp. Com eles cada trecho é decidido em seu momento. O próximo destino da família é o Egito, mas ainda não sabem por qual caminho chegarão lá. Para cobrir os gastos de tanta liberdade, contam com a venda do livro Atrapa Tu Sueño (Agarre Seu Sonho, em tradução livre), que já chegou à sexta edição, em espanhol, e deve ser lançada ainda em 2015 no Brasil.

Às vezes os Zapp definem que vão percorrer 150 quilômetros no dia. Mas se alguém aparece no meio do trajeto – ou mesmo no começo – e os convida para fazer algo diferente, eles não pensam duas vezes e desviam a rota. “Costumamos juntar coisas durante a vida porque é assim que a sociedade nos ensina. Mas o que vale é a quantidade de amigos, de amores e de momentos”, defende Herman. “Às vezes criamos problema por causa da umidade na parede. De repente, visitamos um país onde não sobrou nem uma parede por causa da guerra. Isso faz você valorizar outras coisas. A vida é muito curta”, amarra.