Em um planeta redondo no formato e cíclico em todo seu funcionamento – em que todos os ecossistemas se autoalimentam e cooperam entre si –, o traçado linear de fazer negócios do ser humano nunca se encaixou bem. Esse modelo de extração, transformação e descarte de material da chamada “economia linear”, praticado à exaustão no século 20, encontrou na finitude dos recursos e no aumento da população mundial o próprio abismo. Abriu-se, então, espaço para uma nova proposta: a “economia circular”. Ela vem arredondar as práticas do mercado, encaminhando desperdícios de uma cadeia produtiva a outra, onde servirão como insumos de qualidade, e estendendo ao máximo a vida útil dos recursos naturais, recuperando, reutilizando e reciclando materiais – tudo para evitar que acabem no saco de lixo.

Cena do Fórum Mundial de Economia Circular, na Finlândia (Foto: Sari Gustafsson)

O primeiro Fórum Mundial de Economia Circular, realizado em junho na Finlândia, é um bom termômetro do interesse internacional pelo assunto. Decidido a ser líder em circularidade até 2025, o país anfitrião criou no ano passado um detalhado plano de ação para adotar o novo modelo e reuniu no evento cerca de 1.500 especialistas no tema, entre diretores de empresas, políticos e atores no estabelecimento de políticas públicas de 90 países. Este ano, ainda, baixou de 25% para 12% os impostos sobre o conserto de bens de consumo, de sapatos a máquinas de lavar. Ele reabre, assim, um mercado quase extinto nos países desenvolvidos, onde o serviço de reparo costuma ser mais caro que o produto.

“A economia circular ou economia de ciclo não propõe uma revolução do sistema econômico. Propõe uma mudança do modelo de negócio, mas ainda não há um modelo pronto para ser usado. Estamos construindo tudo agora, na prática-ação”, explica Aldo Roberto Ometto, professor da Escola de Engenharia de São Carlos da Universidade de São Paulo (USP). Ele aponta a mudança de mentalidade em relação ao consumo como um belo impulso para essas novas ideias girarem cada vez mais rapidamente.

Responsabilidade

Com as novas tendências de compartilhamento e a transformação do consumidor em usuário, as empresas não vendem mais seus produtos, mas sim alugam o desempenho deles. Essa mudança faz com que os fabricantes permaneçam responsáveis pelos bens que produzem. “A melhoria ambiental vem como conse­quência: não é mais interessante, por exemplo, usar uma substância tóxica, pois ela inviabiliza a recuperação do material que a fabricante vai precisar reutilizar quando o cliente parar de usar o produto”, comenta Ometto.

Peças tratadas na unidade da Embraco voltada à economia circular (Foto: Daniel Machado)

Especializado no tema há 20 anos, o professor lidera o Programa de Economia Circular junto à Fundação Ellen MacArthur, organização inglesa criada em 2010 para promover essa abordagem pelo mundo, colocando a USP como universidade pioneira no Hemisfério Sul. No início de setembro, o convênio entre as instituições atraiu 60 docentes para um workshop. Apesar de constituírem somente 1% dos 6 mil professores da universidade, esses “intrapreendedores” (ou “empreendedores internos”) estão permitindo a articulação de áreas que antes não dialogavam entre si, como direito, economia e administração, arquitetura e urbanismo, agronomia e engenharia. E a incorporar o tema nas aulas, nas pesquisas e no currículo dos cursos.

O Brasil foi o primeiro mercado fora da Europa onde a Fundação se instalou, em 2015. Somente no ano seguinte foi aberto um escritório nos Estados Unidos. O apelo do Brasil se deu porque o país concentra muita manufatura e consumo dentro do mesmo território, conta com recursos abundantes, tem uma economia baseada em extração e pro­dução (e não em serviços) e lida com fortes questões socioeconômicas de concentração de renda. “Além disso, nas vindas do nosso CEO, ficou claro o apetite das empresas brasileiras por fazer parte da Rede Circular Economy 100 (CE100), plataforma que reúne companhias e governos comprometidos em acelerar a transição para uma economia circular”, ressalta Luísa Santiago, representante da Fundação no Brasil.

Los Angeles (EUA), cuja iluminação urbana é gerenciada pela Philips (Foto: Getty images)

Barreiras regulatórias e fiscais não faltam para dificultar o processo. Mas na Europa não foi diferente. “O sistema foi organizado até aqui para a economia linear. É preciso redesenhá-lo”, observ Luísa. É o que a Comissão Europeia já começou a fazer: implementou um pacote de normativas para incentivar a circularidade e desincentivar a linearidade. Entre elas figuram a redução de impostos sobre produtos remanufaturados (que no Brasil chegam a ser considerados ilegais), o incentivo ao mercado de reúso e não de venda, e a criação de espaços em que governo e empresas dialoguem a respeito dessas mudanças.

Realidade nacional

Das cerca de 20 empresas brasileiras que já aderiram ao CE100, a maioria nem tinha ouvido falar de circularidade até então. Mas algumas já vinham desenvolvendo iniciativas vanguardistas na área. A Embraco, fabricante de compressores herméticos para refrigeração, que já recolhia e reciclava aço, cobre, alumínio, óleo, ferro e plástico havia duas décadas, criou em 2013 a unidade Nat.Genius para atuar nesse segmento. Em 2016 foram processadas quase 11 mil toneladas de materiais, com destaque para o crescimento expressivo de aço (39%) e plástico (30%) em relação aos números registrados em 2015. “Como tomamos os conceitos da economia circular, não derretemos os materiais no forno como as empresas de reciclagem tradicionalmente fazem”, ressalta Ernani Nunes, diretor de Novos Negócios.

Camisetas da nova coleção da C&A (Foto: Divulgação)

Nunes resume a economia circular como um atalho: em vez de levar os materiais de volta à sua condição de matéria-prima para começar todo o processo produtivo de novo, é possível cortar caminho com o uso de engenharia, inteligência e conceitos de produtividade e produção. O executivo dá um exemplo simples: da borracha da porta de refrigeradores retiram-se a borracha e a lâmina de material ferromagnético. “Mantemos a pureza de cada um dos materiais e já os devolvemos à indústria. Assim, eles podem ser incorporados praticamente no fim do ciclo de produção”, afirma.

Segundo Nunes, o fator decisivo para a criação da Nat.Genius foi a oportunidade de negócio. “Não foi a sustentabilidade nem a Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS) – até porque a lei foi aprovada, mas não regulamentada”, observa. Colocada em vigor desde 2010, a PNRS propõe a prática do consumo sustentável, estimula a reciclagem e o reúso dos resíduos sólidos e envolve empresas, governos e cidadãos na responsabilidade compartilhada por esses rejeitos. Na opinião de Luísa, ela peca em sua essência: “O principal erro está no nome, pois trata materiais como resíduos”. Pensar em reciclagem como sinônimo de economia circular é um erro crasso e comum, ela ressalta. “A noção de resíduo é linear por definição, é um erro de design. A reciclagem é a estratégia que tem menos valor e a mais linear de todas dentro da economia circular”, afirma a representante da Fundação.

Impacto menor

A coleção de camisetas da C&A que chegou às lojas do Brasil em setembro ilustra bem essa diferença. Desenhadas no Centro de Inovação Fashion for Good, na Holanda, as peças são feitas em algodão mais sustentável, usando processos menos químicos, energia renovável na fase de corte e costura e 100% de reaproveitamento da água. O tecido pode ser reaproveitado pela indústria e, caso termine em aterro, decompõe-se mais rapidamente. “As camisetas lisas são produtos básicos no guarda-roupa das pessoas, de longo aproveitamento, e pensadas para gerar o menor impacto para o meio ambiente”, diz Rozalia Del Gáudio, gerente sênior de Comunicação e Sustentabilidade da empresa. A coleção recebeu a certificação Gold do Cradle to Cradle (instituição não lucrativa internacional que atua em sintonia com os conceitos da economia circular) e é vendida a preços tão competitivos quanto outras camisetas de mesmo padrão.

Uma experiência ainda mais profunda de circularidade é a da Philips, outro parceiro global da Fundação. A empresa, que sempre vendeu lâmpadas, redesenhou por cinco anos a sua estratégia global e converteu produto em serviço. Reviu os materiais usados nas linhas de montagem, adotou novas tecnologias e processos para gerar receita nas instalações de iluminação. Hoje, a empresa vende luz. Apesar dos inquestionáveis ganhos ambientais dessas iniciativas, a Fundação Ellen MacArthur evita atrelar sua proposta à sustentabilidade. “Falamos de negócios mais resilientes, oportunidades econômicas, diferenciação, adequação ao cenário do futuro e em deixar de estressar o modelo do passado”, afirma Luísa.


Relacionamentos simbióticos

Interior da unidade da Natura em Benevides (PA): ideia do Ecoparque ainda não vingou plenamente (Foto: Divulgação)

Em março de 2014, a Natura inaugurou o primeiro empreendimento de “simbiose industrial” do Brasil – em que, como o termo define, as partes envolvidas se beneficiam mutuamente. Com investimento de R$ 178 milhões, a fabricante de cosméticos e produtos de higiene e beleza abriu as portas do Ecoparque, em Benevides (PA), a 35 quilômetros de Belém, para receber outras empresas de diferentes segmentos a fim de fechar um ciclo de reaproveitamento dos desperdícios de uma empresa em outra. A unidade de fabricação da Natura ocupa apenas 10% dos 172 hectares do complexo e, até o momento, divide o espaço apenas com a Symrise, produtora alemã de fragrâncias, óleos e perfumes.

A Natura utiliza as sementes desperdiçadas pela parceira após a extração dos óleos essenciais como esfoliantes naturais nos seus sabonetes. “É um paradigma integrar num mesmo espaço empresas de diferentes segmentos. Aqui no Brasil as empresas ainda estão aprendendo sobre cooperação e colaboração”, ressalta Keyvan Macedo, gerente de sustentabilidade da Natura. A empresa brasileira já esperava ter outras parceiras instaladas no empreendimento, mas alguns fatores não permitiram que a proposta deslanchasse. “Diversas empresas ficaram interessadas – tanto de pequeno quanto de grande porte – e estiveram a ponto de fechar conosco. Mas o país entrou em um cenário econômico adverso, com retração de consumo, e as empresas passaram a rever seus investimentos”, diz Macedo.

Além disso, a localização do Ecoparque, na região Norte do país (estratégica para a Natura, por trabalhar com a biodiversidade da Amazônia), pode ser um complicador logístico para certas indústrias, por adicionar tempo e custo para chegar aos clientes concentrados no Sul e no Sudeste. O executivo lembra ainda que os incentivos fiscais dados por municípios e estados em geral são mais importantes para a instalação das fábricas do que o apelo da ecologia industrial. A empresa, porém, absorve esses obstáculos como uma curva de aprendizagem. “Os pioneiros sempre carregam a questão do aprendizado: uma complexidade maior nos custos financeiros e nos processos produtivos”, observa Macedo.


O empenho do Google

Já há alguns anos o Google tem se esforçado para introduzir conceitos de sustentabilidade no que faz, e em 2015 deu um salto de algumas oitavas nesse sentido: anunciou uma parceria com a Fundação Ellen MacArthur para inserir a economia circular na infraestrutura, na operação e na cultura da empresa. Segundo o vice-presidente Jim Miller, essas medidas deverão elevar os conceitos de redução de lixo e sustentabilidade na companhia. Kate Brandt, diretora de sustentabilidade do Google, declarou na ocasião que a empresa iria utilizar designs inteligentes em todos os seus setores para descobrir oportunidades com o objetivo de chegar ao desperdício zero. A presença de uma empresa do porte do Google no segmento da economia circular pode significar um impulso e tanto para a disseminação do conceito ao redor do mundo. De acordo com a Comissão Europeia, a introdução de práticas da economia circular pode significar uma economia de US$ 3 trilhões para os países do bloco europeu.