Um dos aspectos mais marcantes da educação sobre o Holocausto é que nenhum país é igual. Mesmo quando dois países estipulam simplesmente “o Holocausto” em seus currículos nacionais, o evento é invariavelmente contextualizado de formas idiossincráticas. Na Inglaterra, por exemplo, o Holocausto é ensinado no contexto da Segunda Guerra Mundial, enquanto o currículo do México exige que ele seja ensinado no contexto de lições sobre violações de direitos humanos. Alguns países põem o Holocausto no centro da história do século 20, enquanto outros o colocam dentro da história europeia ou nem o mencionam. Em suma, entre os 195 países oficialmente reconhecidos no mundo, os currículos estipulam pelo menos 135 versões diferentes do Holocausto.

As representações do Holocausto nos livros de história são mais complexas do que as encontradas nos currículos. O relatório da Unesco “Estado Internacional da Educação sobre o Holocausto – um Mapeamento Global de Livros Didáticos (2015)” documenta as narrativas do episódio em 89 livros-texto publicados em 26 países desde 2000. Os resultados mostram que há padrões amplamente compartilhados pelos quais o Holocausto é representado – padrões que transmitem recorrentes fronteiras geográficas e intervalos de tempo, protagonistas, padrões interpretativos, técnicas narrativas e métodos pedagógicos. No entanto, todos os países revelam idiossincrasias narrativas ao enfatizar a informação seletiva e o significado local do evento, ou ao apropriar-se dele no interesse das populações locais.

Por exemplo, o evento é nomeado de modos muito diferentes. Embora seja geralmente citado com o termo “Holocausto”, alguns livros usam a palavra Shoá (catástrofe, em hebraico) ou ambos os termos em conjunto. Em alguns casos, os autores renunciam aos termos “Holocausto” e “Shoá”, preferindo em seu lugar “genocídio dos judeus” ou “atrocidades”, “assassinato em massa” e “genocídio”. As referências indiretas ou parciais ao evento também são comuns, com termos como “extermínio”, “campo de concentração” ou “Solução Final”, ou combinando termos que indicam claramente ensinamentos sobre o Holocausto (como “destruição” e “judeus”, ou “assassinato” e “nacional-socialismo”).

Perspectivas locais

Os contextos históricos ou temporais atribuídos ao Holocausto também dão origem a idiossincrasias nacionais. O intervalo de tempo geralmente varia de 1933 a 1945, correspondendo ao governo do Partido Nacional-Socialista. Os manuais de outras nações mencionam mudanças importantes em 1938 (o pogrom de novembro) ou 1942 (início do assassinato sistemático em massa) ou o levante do gueto de Varsóvia em 1943. Referências a correntes históricas mais profundas, como teorias raciais do século 19, também surgem em livros didáticos de Brasil, Índia, Alemanha e Namíbia; a história judaica, a emigração ou o antissemitismo pré-século 20 são abordados em manuais argentinos, alemães, japoneses e norte-americanos. Da mesma forma, vários autores de livros didáticos na Argentina, França, Alemanha, Namíbia e Rússia escrevem sobre os efeitos secundários ou a memória do Holocausto após 1945. Nenhum livro em qualquer país apresenta uma narrativa a-histórica ou universal do Holocausto.

Turistas visitam o campo de Auschwitz, na Polônia: contato com um passado ainda não totalmente conhecido no mundo (Foto: P. Part)
Turistas visitam o campo de Auschwitz, na Polônia: contato com um passado ainda não totalmente conhecido no mundo (Foto: P. Part)

A principal constatação do relatório da Unesco é que, apesar de certas consistências internacionais em representações de livros didáticos, a educação sobre o Holocausto é parcialmente dependente de conceitos históricos e tradições narrativas locais. Esses livros refletem um padrão duplo, caracterizado por convergência e divergência. Embora certas consistências sejam evidentes em certas regiões, os conceitos, as narrativas e os enfoques temáticos diferem grandemente não apenas de um país ou região para outro, mas até de um livro a outro em relação a tópicos, eventos e tradições didáticas aos quais o Holocausto está associado localmente. Os resultados sugerem, portanto, que os materiais de aprendizagem fornecem a base não para uma educação comum, mas para uma série de diferentes abordagens ou educações sobre o Holocausto.

Um efeito marcante da influência de conceitos históricos e tradições narrativas locais sobre as representações do Holocausto em livros didáticos é evidente em países que sofreram atrocidades locais e em nações do Oriente Médio, ou mesmo em países sem relação histórica aparente com o evento. Nesses casos, o Holocausto é descontextualizado e recontextualizado. Por exemplo, alguns livros sul-africanos e ruandeses sugerem que a principal causa do Holocausto foi o racismo, ao mesmo tempo que minimizam a influência da guerra, do nacionalismo e de fatores econômicos, políticos e morais. Fazem isso imprimindo grandes ilustrações de Hitler e Darwin lado a lado, ou evocando analogias entre a vida sob o apartheid e a perseguição levada a cabo pelos nazistas.

Adaptações

Alternativamente, o Holocausto é domesticado, sendo conceituado de formas locais, como em livros didáticos chineses, que (em relação ao massacre de Nanjing de 1937) não empregam derivados dos termos “Holocausto” ou “Shoá”, mas sim os termos “genocídio” (datusha) e “tipos de crimes” (zhongzhong zuixing). Os livros chineses tornam o evento compreensível para os leitores locais numa linguagem que lhes é familiar, mas não transmitem a especificidade histórica tradicionalmente atribuída ao Holocausto pelos estudiosos e professores ocidentais.

Enquanto o Holocausto é citado nos livros didáticos de quase todos os países do mundo, aqueles que apresentam conhecimento do evento não necessariamente fornecem conhecimento histórico completo sobre o tema. Em vez disso, o Holocausto funciona regularmente como um modelo, paradigma ou medida de representações de outras atrocidades de acordo com um processo de “mudança de quadros de referência”, pelo qual as explicações do evento mudam ao longo do tempo ou em diferentes lugares. Do mesmo modo, as analogias entre o Holocausto e outros eventos são construídas através da adoção de vocabulário e tropos narrativos do Holocausto com respeito, por exemplo, à fome ucraniana ou ao apartheid na África do Sul.

Em resumo, o Holocausto não é coberto de modo padronizado em todo o mundo. A cobertura real do evento reflete narrativas muito divergentes sobrepostas, dentro das quais o significado local do evento é aparente. Embora haja semelhanças entre livros didáticos específicos ou entre regiões,­ nações e continentes, não se observa um padrão único. As formas como os livros escolares cobrem o Holocausto servem, portanto, como um teste interessante, pelo qual a distribuição e a articulação do conhecimento histórico no mundo podem ser monitoradas.

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