Constantemente você precisa provar e comprovar que é quem diz ser. Embora pareça, essa não é uma questão filosófica. A tarefa é prática e corriqueira: RG, CIC, habilitação, cartões de débito e crédito, crachás corporativos e carteirinhas de mil e uma entidades, que engordam a carteira de todo cidadão, são requisitados para identificar uma pessoa no mundo físico. No ambiente virtual, combinações de usuário e senha funcionam para dar acesso a e-mails, celular, sistemas corporativos, redes sociais e cadastros em lojas online. Lidamos com tantas combinações desse tipo que já se fala de uma nova categoria de estresse: a “fadiga de senhas”.

O grande volume de documentos que carregamos fisicamente e a quantidade de senhas a memorizar fazem qualquer um perder a cabeça – principalmente quando as esquecemos. A solução para driblar a dúvida é o reconhecimento biométrico – que parece apoiado na eficácia do ditado “não se esquece a cabeça porque ela está grudada”. Cada pessoa, afinal, é única. A tecnologia já pode nos reconhecer por isso.

Em questão de segundos, dispositivos modernos são capazes de ler as características de partes do nosso corpo, comparar o que veem com a base de dados que possuem, e atestar a identidade das pessoas previamente cadastradas no sistema. Seja pela impressão digital, pela geometria do rosto, pelo desenho da íris, da retina, do traçado das veias, da palma das mãos, do timbre de voz, pelo próprio DNA, pela dinâmica dos movimentos ao assinar um documento ou, simplesmente, por caminhar.

Entrar na academia ou no trabalho, destravar o celular, tirar dinheiro no banco, votar ou atravessar fronteiras entre países vai cada vez mais passar a depender somente do toque dos dedos, de um olhar, do semblante, do tom da voz e do comportamento de cada um. Mas não é apenas por comodidade que governos e mercado buscaram formas mais seguras e certeiras de identificar quem está do outro lado do balcão, do telefone ou do computador. O maior propósito é reduzir as cada vez mais frequentes falsificações e fraudes que os recursos tradicionais não eliminam.

Mil e uma vantagens

Em muitas áreas a biometria está alterando processos e a vida das pessoas. Vários bancos brasileiros já oferecem leitores de impressão digital nos terminais e caixas automáticos. Os ônibus da cidade de São Paulo vão ganhar leitores digitais em breve, para evitar o uso indevido dos passes mensais e semanais criados pelo prefeito Fernando Haddad. O Estado do Rio de Janeiro convive há oito anos com cédulas de identidade com chip biométrico. O Rio é um parâmetro para os planos federais de um novo Registro de Identidade Civil (RIC) baseado em autenticação biométrica.

Em 2014, mais de 22 milhões de eleitores brasileiros vão votar sem precisar de cédula, graças à tecnologia biométrica. O cadastramento vai continuar até que todos os 141 milhões de eleitores se identifiquem aos mesários unicamente por meio de seu corpo.

Pelo mundo afora, a adoção da biometria se multiplica. O novo Google Glass promete fazer o reconhecimento facial de pessoas em meio à multidão. Num gesto que ainda pretende ser vanguardista, a Apple adotou o reconhecimento de impressão digital no modelo de iPhone 5S, recentemente lançado, tateando o mercado em busca de aceitação para esse mecanismo e abrindo espaço para mais transações financeiras pelo celular. E os demais fabricantes estão seguindo o rastro.

A Índia, onde a maioria da população não possui documentos, aposta em um cadastro único nacional dos cidadãos promovido pela Unique Identifi cation Authority of India, baseado na leitura da íris e das digitais. As duas tecnologias e a topografia da face foram escolhidas também pela nova norma mundial de emissão de passaportes, número 9303, definida pela Organização Internacional de Aviação Civil para controlar a migração em aeroportos. Rússia, China e vários países da União Europeia já começaram a transição para o novo modelo.

O Barclay Wealth, braço para gestão de patrimônio do banco britânico Barclays, adotou o reconhecimento de voz e reduziu a zero a taxa de 25% dos telefonemas fraudulentos que conseguiam passar pelos sistemas de segurança. O banco Supervielle, da Argentina, conseguiu evitar grandes perdas financeiras no pagamento de aposentadorias com o uso de leitores de impressão digital. Um grande volume de dinheiro era retirado indevidamente em nome de pessoas já falecidas. As perdas evitadas, apenas no primeiro ano, foram duas vezes maior do que os gastos com a adoção da tecnologia.

Embora a leitura das digitais ainda seja o recurso biométrico mais usado pelos sistemas de segurança, a modalidade sofre de certo estigma. “Nós, latino-americanos, estamos acostumados a entregar nossas digitais ao governo para tirar documentos. Mas nos Estados Unidos, China e países da Europa o cadastro das digitais está limitado aos criminosos, imigrantes e funcionários do governo. Possui uma conotação negativa”, comenta Juan Carlos Tejedor, diretor de vendas para a América Latina, da Lumidgm, fabricante norte-americana de leitores de digital.

Para Tejedor, a evolução das tecnologias biométricas já reduziu a taxa de falsos positivos e falsos negativos – quando as ferramentas não identificam você como sendo você, ou reconhecem outra pessoa ou uma prótese sem vida como sendo você. Essa melhoria dos mecanismos de reconhecimento biométrico permitiu a massificação do uso, principalmente em ambientes não controlados, como um caixa eletrônico, onde não há supervisão de ninguém.

Um estudo realizado pela Ericsson com 5 mil usuários de smartphones em dez grandes cidades do mundo – incluindo São Paulo, Pequim, Nova York e Londres – comprova a repulsa. Dos entrevistados, 52% preferem usar as digitais para se livrar de senhas, 48% preferem o reconhecimento de íris e 72% acreditam que os celulares biométricos se tornarão uma norma em 2014.

Byung Wha Lim, diretor de tecnologia da Ubkey, fabricante sul-coreana de dispositivos de leitura da íris, aponta também as vantagens de usar o rosto em vez das mãos. “Mais de 15% da população mundial não tem digital – seja por não ter mãos ou por doenças. A pele suja ou transpirada pode dificultar a leitura e em setores que usam luvas é inviável. Já a íris todos têm, mesmo os deficientes visuais, e seu reconhecimento é mais prático”, afirma.

Mil e um riscos

A comodidade da identificação biométrica é um alento para a vida atarefada e superconectada de hoje. Já virou um instrumento para empresas reduzirem golpes, roubos de informação e custos operacionais – proporcionando menos ligações para as centrais de relacionamento de clientes que esqueceram suas senhas, menos despesas de envio de novas senhas e novos cartões. Mas é claro que não é a solução para todos os males.

Para começar, apesar de precisa, a identificação biométrica não é 100% infalível: os falsos positivos e negativos ainda existem e as próteses sempre podem ser melhoradas. “Existe também uma corrente grande de críticos ao uso da biometria que sustentam que o governo não tem o direito à informação do que nossos corpos revelam sobre nós. E uma vez nas mãos do governo, a informação pode ser utilizada para uma grande variedade de propósitos”, diz Alexandre Freire, consultor de segurança da informação e docente do Núcleo de Computação Eletrônica da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

O maior temor é que a tecnologia sirva para vigilância eletrônica em massa. Além disso, as bases de dados governamentais são permeáveis, e essas informações podem chegar às mãos do setor privado.

Um exemplo palpável aconteceu em agosto. Um acordo de cooperação técnica entre o Tribunal Superior Eleitoral e a empresa transnacional de análise de crédito Serasa Experian foi publicado no Diário Oficial da União. O TSE anunciou que abriria dados da ficha cadastral dos eleitores para a Serasa Experian, que, em troca, forneceria mil certificados digitais ao tribunal. Houve tantos protestos que o convênio foi suspenso alguns dias depois. A controvérsia abalou o projeto federal do novo Registro de Identidade Civil.

Outra iniciativa polêmica é a da rede britânica de supermercados Tesco, que está adotando o reconhecimento facial para identificar clientes logo de cara e enviar aos seus celulares ofertas sob medida. Diferentemente dos governos que estabelecem medidas compulsórias aos cidadãos, espera-se que a empresa obtenha o consentimento dos clientes para integrar um cadastro. Senão, é pura invasão de privacidade.

De qualquer forma, a linha que separa a comodidade da privacidade é cada vez mais tênue na sociedade moderna. Como sempre, as novas soluções trazem novos problemas que, nesse caso, não são tão facilmente eliminados com a ponta dos dedos ou um olhar.