“Não conheço minha idade: nasci no deserto do Saara, sem endereço nem documentos! Nasci num acampamento nômade tuaregue entre Timbuctu e Gao, no norte do Mali. Fui pastor dos camelos, cabras, cordeiros e vacas que pertenciam a meu pai. Hoje, estudo administração na Universidade de Montpellier, no sul da França. Estou solteiro. Defendo os pastores tuaregues. Sou muçulmano, mas sem fanatismo.”

Esta é uma autodescrição do malinês Moussa Ag Assarid, escritor, jornalista e político que mora na França desde 1999. Conhecê-lo e à sua obra nos põe em contato com um povo cujo cotidiano e concepção de vida nos é praticamente desconhecido – o tuaregue. Confira mais sobre ele na entrevista a seguir, concedida ao jornalista catalão Victor M. Amela alguns anos depois do lançamento de seu livro mais conhecido, Y a pas d’embouteillage dans le désert! (Não há engarrafamentos no deserto!), de 2006.

Que turbante bonito!

É apenas um tecido fino de algodão: permite cobrir o rosto no deserto quando a areia se levanta e, ao mesmo tempo, você pode continuar vendo e respirando através dele.

Sua cor azul é belíssima…

Essa é a razão pela qual chamam a nós, tuaregues, de homens azuis: o tecido aos poucos desbota e tinge nossa pele com tons azulados.

Como vocês produzem esse intenso azul anil?

Com uma planta chamada índigo, misturada a outros pigmentos naturais. O azul, para os tuaregues, é a cor do mundo.

Por quê?

É a cor dominante: a do céu, a do teto da nossa casa.

Quem são os tuaregues?

Tuaregue significa “abandonado”, porque somos um velho povo nômade do deserto, um povo orgulhoso: nos chamam Senhores do Deserto. Nossa etnia é a amazigh (berbere), e nosso alfabeto, o tifinagh.

Quantos vocês são?

Cerca de 3 milhões, a maioria ainda nômades. Mas a população vem diminuindo. “É preciso que um povo desapareça para que percebamos que ele existia!”, denunciou certa vez um sábio. Eu luto para preservar o meu povo.

A que ele se dedica?

Ao pastoreio de rebanhos de camelos, cabras, cordeiros, vacas e asnos, num reino feito de infinito e de silêncio.

O deserto é mesmo tão silencioso?

Quando se está sozinho naquele silêncio, ouvem-se as batidas do próprio coração. Não existe melhor lugar para quem deseja encontrar a si mesmo.

Que recordações da sua infância no deserto você conserva com maior nitidez?

Acordo com o sol. Perto de mim estão as cabras de meu pai. Elas nos dão leite e carne, nós as conduzimos para onde existe água e grama. Assim fizeram meu bisavô, meu avô, meu pai e eu. No mundo não havia nada além disso, e eu era muito feliz assim.

Bem, isso não parece muito estimulante.

Mas é, e muito. Aos 7 anos de idade, já permitem que você se afaste do acampamento e descubra o mundo sozinho, e para isso lhe ensinam coisas importantes: a cheirar o ar, a escutar e ouvir, a aguçar a visão, a se orientar pelo sol e pelas estrelas. E a se deixar conduzir pelo camelo; se você se perde, ele lhe conduzirá até onde existe água.

Esse é um conhecimento muito valioso, não há dúvida.

Lá tudo é simples e profundo. Há poucas coisas no deserto, e cada uma delas possui grande valor.

Assim sendo, este mundo e aquele são bem diferentes, não é mesmo?

Lá, cada pequena coisa proporciona felicidade. Cada roçar é valioso. Sentimos uma enorme alegria pelo simples fato de nos tocarmos, de estarmos juntos. Lá ninguém sonha com chegar a ser, porque cada um já é.

O que mais o chocou ao chegar pela primeira vez na Europa?

Ver a gente correr nos aeroportos. No deserto, só corremos quando uma tempestade de areia se aproxima. Fiquei assustado, é claro.

Corriam para buscar suas bagagens.

Sim, devia ser isso. Também vi cartazes mostrando moças nuas: “Por que essa falta de respeito para com a mulher?”, perguntei-me. Depois, no Hotel Íbis, vi uma torneira pela primeira vez em minha vida: vi a água correr e tive vontade de chorar.

Capa do livro “Y’a pas d’embouteillage dans le desert!” (Não há engarrafamentos no deserto), de Moussa Ag Assarid
Que abundância, que desperdício, não é mesmo?

Até então, todos os dias da minha vida tinham sido dedicados à procura d’água. Até hoje, quando vejo as fontes e os chafarizes decorativos que existem aqui, sinto uma dor imensa dentro de mim.

Por quê?

No começo dos anos 1990 houve uma grande seca, os animais morreram, nós adoecemos. Eu tinha uns 12 anos e minha mãe morreu. Ela era tudo para mim. Contava-me histórias e ensinou-me a contá-las bem. Ensinou-me a ser eu mesmo.

O que aconteceu com sua família?

Convenci meu pai a me deixar frequentar a escola. Todos os dias eu caminhava 15 quilômetros para chegar até ela. Até que um professor arrumou uma cama para eu dormir, e uma senhora me dava comida quando eu passava em frente à sua casa. Entendi: era minha mãe que me ajudava.

De onde veio essa paixão pelos estudos?

Dois anos antes, o Rali Paris-Dacar passou pelo nosso acampamento e caiu um livro da mochila de uma jornalista. Eu o apanhei e devolvi a ela. Mas ela me deu o livro de presente e disse que ele se chamava O Pequeno Príncipe. Naquele instante, prometi a mim mesmo que um dia seria capaz de lê-lo.

E você conseguiu?

Sim. Foi assim que consegui uma bolsa para estudar na França.

Um tuaregue na universidade!

Do que mais tenho saudade é do leite de camela. E do fogo de madeira, de caminhar descalço sobre a areia tépida e das estrelas. Lá, nós as admiramos todas as noites, e cada estrela é diversa da outra, como cada cabra é diversa da outra. Aqui, à noite, vocês ficam vendo televisão.

Na sua opinião, qual é a pior coisa que existe aqui?

A insatisfação. Vocês têm tudo, mas nada é suficiente. Vivem se queixando. Na França, passam a vida se queixando. Vocês se acorrentam por toda a vida a um banco por conta de um empréstimo, e existe essa ânsia de possuir, essa correria, essa pressa. No deserto não há engarrafamentos, sabe por quê? Porque lá ninguém quer passar na frente de ninguém!

Relate um momento de felicidade intensa que você viveu no seu distante deserto.

Esse momento se repete a cada dia, duas horas antes do pôr do sol: o calor diminui, o frio da noite ainda não chegou, homens e animais retornam lentamente ao acampamento e seus perfis aparecem como recortes contra o céu que se tinge de rosa, azul, vermelho, amarelo, verde.

É fascinante. E então…

Esse é um momento mágico. Entramos todos na tenda e fervemos a água para o chá. Sentados, em silêncio, escutamos o barulho da água que ferve. A calma toma conta de nós. As batidas do coração entram no mesmo compasso dos gluglus da fervura.

Que paz…

Aqui, vocês têm o relógio; lá, temos o tempo.

No deserto não existe engarrafamento!

Moussa Ag Assarid veio do deserto com uma mensagem de solidariedade dos tuaregues para os povos ocidentais. “Nasci pastor nômade (entre 1975 e 1978), de pais tuaregues, no norte do Mali, entre Timbuctu e Gao, com a areia nos olhos e a olhar para as estrelas. Só fui à escola por volta dos meus 13, 14 anos”, revela.

Após completar a escolaridade básica em Ansongo, tirou o bacharelato na capital do Mali, Bamako, e prosseguiu seus estudos na França, aonde chegou em agosto de 1999. Primeiro na Universidade de Angers (em razão da ligação de Angers com Bamako) e depois na Universidade de Montpellier, onde cursou administração.

Hoje é escritor, jornalista, contador de histórias e ator. Seu primeiro livro, Não Há Engarrafamentos no Deserto!, foi lançado na França (40 mil exemplares) em 2006, seguido por Crianças das Areias, de 2008, em coautoria com seu irmão, Ibrahim. Estão traduzidos em espanhol, italiano, coreano, árabe e catalão. “Atualmente, escrevo um terceiro livro com a minha amiga Nathalie Valema Gil sobre a Caravana do Coração, movimento do qual sou fundador”, revela no seu blog

http://moussa-blog.azawadunion.com.