O Solar Impulse passeia sobre campos cultivados entre Bruxelas e Paris. O avião chega a atingir 70 km/h.

Os aviões de carreira que fazem a rota entre a capital da Espanha, Madri, e a do Marrocos, Rabat, percorrem os 764 quilômetros que separam as duas cidades em pouco mais de uma hora. Comparado a isso, o monoplano Solar Impulse demorou uma eternidade: em 5 de junho, fez o trajeto em 19 horas, a uma velocidade média de pouco mais de 40 km/h. Mas os pilotos e construtores do vagaroso avião não têm do que reclamar. A viagem de junho representou um marco histórico: foi o primeiro voo transcontinental feito por uma aeronave movida a energia solar. Pouco a pouco, o projeto de dois suíços, o aeronauta Bertrand Piccard e o empresário de tecnologia André Borschberg, vai se consolidando e dando a esperança de que, no futuro, o transporte aéreo possa prescindir dos caros e poluentes combustíveis fósseis.

Desenvolvido desde 2003, o Solar Impulse nasceu como um projeto de dez anos e investimentos de 90 milhões de euros (pouco mais de US$ 112 milhões). A construção do primeiro protótipo (o HB-SIA), concluí da em 2009, teve a participação de 50 especialistas oriundos de seis países, o apoio de 100 consultores e o financiamento de várias empresas privadas, entre as quais se destacam a fabricante de elevadores Schindler, o grupo químico belga Solvay, a indústria relojoeira Omega SA e o Deutsche Bank. Hoje, cerca de 85 pessoas trabalham mais diretamente no projeto, nas cidades suíças de Lausanne, Payerne (onde fica o hangar) e Dübendorf.

Quem está habituado aos aviões convencionais vai achar o Solar Impulse esquisito. A estranheza fica por conta sobretudo das grandes asas – cuja envergadura (63,4 metros) se assemelha à de um Airbus A340 -, contrapostas a uma pequena fuselagem. Sobre esses 200 metros quadrados são dispostas quase 12 mil células fotovoltaicas, responsáveis por abastecer com energia solar as baterias de íon-lítio, que com ela movimentam quatro motores elétricos a hélice com potência de 10 cavalos cada um (equivalente à de uma pequena lambreta).

CERCA DE 12 MIL CÉLULAS VOLTAICAS SOBRE AS ASAS CAPTAM A ENERGIA QUE MOVIMENTA OS MOTORES

O deserto marroquino é sobrevoado na fase final do primeiro voo entre continentes.

No esforço para reduzir ao máximo o peso, o avião foi construído basicamente com fibra de carbono e dispõe de espaço apenas para o essencial – a área do piloto, por exemplo, equivale à da metade de uma cabine telefônica. No conjunto, o Solar Impulse pesa cerca de 1.600 quilos, praticamente o mesmo que um automóvel médio.

Sustentar-se quando o sol se põe é o principal desafio desse aparelho, resolvido por enquanto com a capacidade das baterias de íon-lítio e a habilidade dos pilotos de consumir o mínimo de energia enquanto voam no escuro.

Na melhor tradição suíça, as etapas de planejamento têm sido cumpridas com precisão. Uma vez pronto, o HBSIA começou a ser testado em estágios. No primeiro voo, em 26 de junho de 2009, o piloto Markus Scherdel conduziu o avião por 350 metros a um metro acima do solo, a fim de verificar sobretudo sua capacidade de controle. Em 7 de abril de 2010, um voo de 87 minutos, mais uma vez a cargo de Scherdel, atingiu 1.200 metros de altitude. Em 28 de maio, Borschberg pilotou o avião na primeira viagem na qual as baterias foram recarregadas em voo: 26 horas e 10 minutos, decolando e pousando em Payerne e atingindo a altitude máxima de 8.700 metros.

Os voos internacionais começaram em 2011. Em 13 de maio, Borschberg fez em 13 horas o trajeto entre Payerne e Bruxelas, com velocidade média de 50 km/h e altitude máxima de 1.829 metros – indicada para não atrapalhar o tráfego aéreo normal. Em 14 de junho, o empresário pousou em Paris, após 16 horas de viagem entre a Suíça e a França. O passo seguinte foi cruzar o mar, feito conseguido em junho.

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Visionários suíços

Bertrand Piccard e André Borschberg, a dupla por trás do Solar Impulse, parece ser talhada para desafios. Bertrand, 54 anos, vem de família ilustre quando se fala em aventuras: seu avô, Auguste, tornou-se em 1931 o primeiro homem a atingir a estratosfera em um balão, e 29 anos depois seu pai, Jacques, foi o primeiro a chegar ao fundo da Fossa das Marianas, o ponto mais profundo da crosta terrestre, a 11 mil metros abaixo do nível do mar (o diretor de cinema James Cameron repetiu esse feito em março deste ano). O próprio Bertrand já tinha uma proeza mundial no currículo: foi a primeira pessoa a circum-navegar a Terra num balão de ar quente sem escalas, em 1999. Essa experiência está na raiz de seu envolvimento com o projeto do Solar Impulse: “Percebi então quão dependentes somos do petróleo liquefeito”, declarou à imprensa.

Borschberg, de 59 anos (mas com aparência bem mais jovem), é descrito por Piccard como um “workaholic que nunca para”. Ele tirou seu brevê ainda com 17 anos e durante duas décadas pilotou jatos da Força Aérea Suíça, antes de montar sua própria empresa de tecnologia.

A próxima fase do projeto é mais ambiciosa. Os dois suíços querem dar a volta ao mundo em 2014, a fim de promover a tecnologia solar. A ideia é voar no Hemisfério Norte, perto da linha do equador, no sentido leste, em cinco etapas. Para concretizá-la, já está em preparação o protótipo HB-SIB, com envergadura das asas oito metros maior e mais proteção contra a chuva para os aparelhos eletrônicos.

O PRÓXIMO DESAFIO PLANEJADO POR PICCARD E BORSCHBERG SERÁ UMA VOLTA AO MUNDO COM O AVIÃO EM 2014, PARA PROMOVER A ENERGIA SOLAR

A jornada durará entre 25 e 30 dias, período no qual Piccard e Borschberg se revezarão na cabine. Mas o maior obstáculo deverá ser a travessia dos oceanos, um voo de 150 horas sem escalas. Não há plano B se algum problema ocorrer: o aparelho se partiria ao bater na água. “Levamos paraquedas”, diz Piccard. Outro empecilho serão as altitudes elevadas. Voar a 8 mil metros de altura implica enfrentar uma temperatura externa de 40°C negativos protegido apenas por almofadas aquecidas e pelo isolamento térmico da cabine. Ventos fortes terão de ser controlados com os braços, já que um sistema hidráulico consumiria muita energia.

O primeiro voo com recarga das baterias no ar, em maio de 2010.

Para encarar uma viagem desse porte, os pilotos já estão treinando física e mentalmente. Borschberg, por exemplo, fez em fevereiro um bem-sucedido teste virtual de 72 horas contínuas num simulador de voo em Dübendorf.

Piccard e Borschberg seguem firmes na disposição de usar o Solar Impulse como símbolo para “ajudar a mudar a mente das pessoas sobre as energias renováveis”. Quanto a voos comerciais movidos a energia solar, os dois são mais cautelosos. Piccard já declarou que ainda considera esse um evento distante. Mas Borschberg deixa uma janela aberta para a surpreendente capacidade criativa do homem: “Em 1903, quando os Irmãos Wright voaram 260 metros, quem poderia adivinhar que um dia um avião levaria 800 passageiros sobre o oceano?”

Piccard no cockpit. Primeiro homem a circum-navegar a Terra sem escalas num balão de ar quente, ele agora se prepara uma nova volta ao mundo com o Solar Impulse.