Primeira mulher de uma família de cientistas a concluir o ensino superior, a antropóloga carioca Yvonne Maggie tem uma trajetória que se confunde com a própria história da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Ingressante como aluna de graduação de ciências sociais em 1965, ela assumiu o posto de docente antes mesmo de concluir a pós-graduação, durante a ditadura militar (1964-1985). Atuante há mais de 50 anos na instituição, ocupou cargos de direção na editora da UFRJ e no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS). Também criou um programa de iniciação científica que permitiu reduzir a evasão de alunos no curso de ciências sociais. 

Se no mestrado, concluído em 1975, descobriu o papel fundamental do conflito nas dinâmicas de terreiros de umbanda e candomblé no Brasil, no doutorado identificou aspectos que permitiram uma melhor compreensão das relações entre o Estado e as religiões de matrizes africanas. Desde a pós-graduação até os dias atuais, em que estuda o percurso de vida de mães de alunos do ensino médio que ascenderam socialmente, a questão racial permanece central na sua reflexão intelectual. 

Em 2017, ano em que se tornou professora emérita, foi eleita para a Academia Brasileira de Ciências (ABC). Nesta entrevista, concedida de forma virtual a “Pesquisa FAPESP”, da casa em que vive no Rio com o marido, o artista plástico Luiz Alphonsus, Maggie relembrou a importância de seu pai, o físico Joaquim da Costa Ribeiro (1906-1960), em sua biografia, tratou dos seus principais temas de pesquisa e abordou a relação entre seus estudos e o posicionamento sobre as cotas raciais.

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Gostaria de começar abordando suas origens e a relação com seu pai.

A minha origem familiar se confunde com a da antiga Universidade do Brasil, atual UFRJ. Meu pai, Joaquim da Costa Ribeiro, foi professor catedrático de física na universidade e fundador da Universidade do Brasil. Ele se formou na Escola Nacional de Engenharia, que ficava no Largo São Francisco e, desde o início dos anos 1970, abriga as ciências sociais na UFRJ. Foi ali que trabalhei ao longo da minha vida. Não convivi com meu pai por muito tempo porque ele morreu cedo, aos 54 anos, mas lembro de tardes passadas com ele em seu laboratório na Faculdade Nacional de Filosofia, criada dentro da Universidade do Brasil para formar professores. Era uma universidade de pesquisa e ensino que atuava com a ideia de que, sem pesquisa, você não ensina nem forma bons professores. Meu pai convivia com cientistas do Brasil e do mundo e fez parte do grupo que fundou o CNPq [Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico], a Capes [Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior], o CBPF [Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas], a CNEN [Comissão Nacional de Energia Nuclear] e a Agência Internacional de Energia Nuclear. Essas instituições são fruto do esforço de uma geração da qual ele fez parte e que me marcou. Assim como eu, muitos dos meus irmãos herdaram essa vontade de conhecer e pesquisar.

Há outros cientistas na família?

Tenho dois irmãos físicos, um químico, um economista e uma psicanalista. O mais velho, Sergio, foi um grande físico que, ao longo da vida, se tornou um importante pesquisador da educação. Morreu também muito cedo. Carlos foi um químico dedicado às questões ambientais, é físico e professor emérito da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro [PUC-RJ], e Jeanne Marie é psicanalista. Tenho dois sobrinhos nas ciências sociais: Carlos e Joana, antropóloga. Eu fui a primeira mulher da família a seguir o caminho das ciências. Minha mãe tinha recém-iniciado o curso de belas artes quando se casou e teve nove filhos. O fato de ela simplesmente ter abandonado seu dom por causa dos filhos me impressionou muito ao longo da vida. Desde cedo a minha atuação na UFRJ foi marcada pela percepção da importância da ciência e da formação de jovens cientistas. Comecei a dar aulas em 1969. Muitos professores já haviam sido cassados em razão do golpe militar. Foi uma experiência dura porque eu ainda não tinha mestrado. Naquela época, o programa de pós-graduação do Museu Nacional estava apenas começando. Também não havia concurso. Fui indicada pela titular da área de antropologia, Marina de Vasconcelos [1912-1973], que tinha sido cassada pelo AI-5 [Ato Institucional nº 5]. O início da minha atuação foi conturbado, com a polícia política na porta da sala de aula. O IFCS foi o mais visado pela repressão. Eu sempre confiante de que o meu papel não era só o de ler livros, fazer pesquisa e dar aulas, mas também o de construir e melhorar as instituições em que atuava.

Por que optou pela antropologia?

Sou de uma geração que foi formada em um ambiente democrático. Havia a perspectiva de assumir postos de poder para transformar o Brasil, em todos os sentidos. Eu não era militante, mas era de esquerda. Quando veio o golpe, foi uma grande decepção. Queríamos fazer uma revolução, acabar com a pobreza – naquela época não se falava em desigualdade. Essa categoria apareceu mais tarde. Partimos, então, para entender o país de outro ponto de vista e foi aí que apareceu a antropologia, que me deu régua e compasso para viver no Brasil da repressão e da falta de perspectiva. A antropologia permite tirar os olhos de nosso próprio umbigo e buscar entender o que os outros pensam e sentem.  Tanto é assim que, nos meus primeiros anos de pesquisa, escolhi estudar uma religião que não era minha. Guerra de Orixá: Um estudo de ritual e conflito [Zahar, 2001], meu primeiro livro, resultado da dissertação de mestrado, é o estudo de um terreiro na zona norte do Rio. Ao mesmo tempo, comecei a trabalhar para melhorar a pesquisa e o ensino na universidade. Criamos um programa chamado Laboratório de Pesquisa Social, com a ideia de juntar pesquisa e ensino já no primeiro ano da faculdade em 1986. Por meio de bolsas concedidas pelo CNPq, o objetivo era apoiar os alunos que tinham dificuldades em se manter na universidade por falta de recursos. O programa foi iniciado com a ajuda do CNPq, mas logo depois teve um grande apoio da Fundação Ford. Por seu intermédio, em 10 anos transformamos o curso de ciências sociais, reduzindo significativamente a evasão de alunos e formando uma geração que teria sido perdida caso não fosse apoiada.

Qual foi a inovação da sua pesquisa de mestrado? 

Quando elaborei meu projeto de pesquisa, um dos professores do programa de pós-graduação do Museu Nacional comentou: “Mais uma tese sobre umbanda”. Isso me deixou deprimida, mas também me instigou a fazer algo inovador. Eu tinha lido a extensa bibliografia sobre religiões afro-brasileiras, hoje intituladas de matrizes africanas, e percebi uma tendência nesses trabalhos de buscar explicações sobre essas religiões em suas origens africanas. Era um pensamento circular, tautológico. Rompi com isso. Parti para a pesquisa de campo porque considero impossível estudar religiões de origem africana, no Brasil, sem ser de certa forma um participante. O modelo teórico que havia antes era um modelo de explicação pela origem. Eu tinha formação voltada a entender a estrutura daquela situação social, então busquei descrever e compreender as relações entre as pessoas no terreiro. Descobri um aspecto fundante dessas religiões. Ao lado da vida comunitária, existia o conflito. A história dos terreiros mais tradicionais do Brasil começa com um rompimento e uma guerra. Os autores que haviam estudado esse processo não se aprofundaram, como se fosse um tema tabu. O terreiro sempre foi, e me parece que continua sendo, um espaço comunitário, mas também de conflito. Penso que a minha pequena contribuição foi ter descrito a estrutura desses conflitos.

E como isso se deu?

Foi uma combinação de sorte e boa orientação. Um dia, cheguei quase chorando e falei para o antropólogo Roberto DaMatta, meu orientador: “A minha pesquisa acabou porque o terreiro acabou. Eles brigaram”. DaMatta respondeu: “Yvonne, agora é que vai começar”. Aquilo me deu um insight e aprofundei a investigação nesse aspecto do conflito. Tive um hiato grande entre o mestrado e o doutorado. A dissertação eu defendi em 1974. A tese, em 1988. Nesse intervalo continuei trabalhando e fazendo pesquisa. Porém, assim como a vida de muitas mulheres, a minha também foi marcada por percalços. Separei-me do primeiro marido, Gilberto Velho [1945-2012], também antropólogo, e isso me fez ter alguma dificuldade na carreira. Éramos conhecidos como o casal antropológico, muito unidos. A separação foi traumática.

A umbanda seguiu como tema do doutorado? 

No doutorado, além de ter feito pesquisa em terreiro, também desenvolvi estudos no Museu da Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro. Hoje, o Museu da Polícia e sua coleção, intitulada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional [Iphan] de Coleção Magia Negra, e que foi o primeiro registro do livro de Tombo arqueológico, etnográfico e paisagístico, feito em 1938, estão no centro do debate sobre a questão da intolerância religiosa. Desde os anos 1970 houve uma luta para que as peças retiradas de terreiros em ações repressivas fossem devolvidas a seus proprietários originais. Em 2017, um grupo de lideranças religiosas e políticas organizou-se na campanha Liberte Nosso Sagrado. O grupo obteve uma grande vitória. A coleção será transferida para o Museu da República. Eu fui, talvez, a primeira pesquisadora a entrar nesse museu para realizar uma investigação intensiva. Estava curiosa demais, queria entender a repressão. Queria descobrir como a umbanda tinha sido tão perseguida e, ao mesmo tempo, crescido tanto, a ponto de fazer com que o Rio de Janeiro fosse um terreiro a céu aberto.

Durante a ditadura havia dois adesivos comuns que eram colados no vidro dos carros. O bordão da ditadura, Brasil, ame-o ou deixe-o, usado em veículos de pessoas que aderiram ao golpe, e o número 7 em vermelho estampado em um fundo preto. Era o símbolo do Seu Sete da Lira, o exu mais famoso dos anos 1970. O centro que o recebia, na Baixada Fluminense, acolhia milhares de pessoas a ponto de dispor de um relógio de ponto para registrar a frequência dos médiuns. A médium dona Cacilda recebia essa entidade masculina, o Seu Sete da Lira, antes de entrar em uma espécie de palco, uma enorme passarela, e ficava aspergindo cachaça nos consulentes. Centenas de pessoas se diziam curadas por ela. O centro também era frequentado por pessoas de camadas altas. O exu, Seu Sete da Lira, apareceu em um domingo de 1971 nos programas do Chacrinha [José Abelardo Barbosa de Medeiros, 1917-1988] e do Flavio Cavalcanti [1923-1986]. Os programas de massa, populares, estavam começando na televisão brasileira. A aparição de Seu Sete foi bombástica e teve, inclusive, consequências na instituição da censura prévia à televisão.

Qual a principal descoberta da sua tese?

Estudei as relações entre os terreiros e o Estado brasileiro e publiquei a tese no livro Medo do feitiço: Relações entre magia e poder no Brasil [Arquivo Nacional 1992]. A minha questão era a seguinte: como uma religião tão reprimida consegue se expandir tanto? Na minha perspectiva, a umbanda não era e não é uma religião negra. Era uma religião de origem africana, mas da qual participavam e ainda participam pessoas de todas as camadas da sociedade brasileira – homens, mulheres, brancos, pretos, pobres e ricos. E esse era seu grande atrativo. Assim como no candomblé, os terreiros funcionavam como lugar de encontro. Pesquisei processos criminais gerados pela repressão, a partir dos artigos 157 e 158 do Código Penal de 1890 que condenavam médiuns, pais e mães de santo, acusados de praticar a magia, o mal, a feitiçaria, ou o feitiço. A feitiçaria é a crença de que um médium pode usar seus poderes sobrenaturais conscientemente para praticar o mal. Descobri que, aqui, o artigo do Código Penal que mais reprimiu e penalizou as pessoas, o 157, era exatamente aquele que expressava a crença do legislador na existência de magia, pois afirmava: “[…] praticar o espiritismo, a magia e seus sortilégios, usar de talismãs e cartomancias para despertar sentimentos de ódio ou amor, inculcar cura de moléstias curáveis ou incuráveis, enfim, fascinar e subjugar a credulidade pública: penas de prisão por um a seis meses e multa”. Dessa forma, o artigo assumia que a magia podia produzir efeitos nas pessoas. Meu orientador, o antropólogo Peter Henry Fry, tinha feito pesquisa na África, na Rodésia do Sul [atual Zimbábue]. Quando relatei os primeiros processos e o artigo 157 do Código Penal, Peter Fry espantou-se e disse que, na Rodésia, a lei era justamente o contrário. Me disse para ler autores que também estudaram acusações de feitiçaria na região. Me dei conta de que a lei inglesa, ao contrário da brasileira, punia os acusadores, rompendo com o processo de produção do feiticeiro. No Brasil, ao contrário, o Estado se imiscuiu na crença porque punia quem fosse acusado de praticar o mal, a feitiçaria. Ou seja, o Estado acreditava na magia. Se você proíbe o espiritismo e a magia, é porque acredita que alguém tem poderes sobrenaturais.

E como era em outros países?

Só existe feiticeiro se alguém acusa outro, ou seja, para a feitiçaria existir, é preciso que ocorra uma acusação. Para a empresa colonial britânica, a feitiçaria africana não existia. Assim, ela não caçava feiticeiros nem se imiscuía nos assuntos da magia. Já no Brasil republicano, os acusadores eram bem-vindos e, assim, o Estado se tornou um oráculo, separando os pais e mães de santo que considerava falsos dos verdadeiros e encarcerando aqueles acusados de praticar o mal por meio de poderes espirituais. São dois modelos legislativos diferentes. Um deles, o brasileiro, persegue os acusados de fazer feitiço, os feiticeiros, como na Inquisição, e, com isso, funda a nossa crença na feitiçaria. Essa foi minha tese de doutorado, que tentei demonstrar por meio da descrição e análise de processos criminais envolvendo terreiros, de 1890 até os anos 1980.

A antropóloga com seu marido, Luiz Alphonsus, durante gravação de documentário em terreiro onde realizou pesquisas, em 1978. Crédito: Tema Pechman
Como a senhora vê a relação entre fé e ciência?

Foi uma pergunta que me fiz algumas vezes pela convivência com meu pai que, além de grande físico, também era um fervoroso católico. A antropologia me mostrou que são duas formas distintas de conhecimento. A ciência pergunta “como” e a fé busca responder “por quê”. Meus pais morreram cedo. Muitos pais morrem cedo, a ciência me mostra isso com estatísticas, mas a religião e a magia respondem: por que logo eu fiquei órfã e não a minha vizinha? São, portanto, dois pensamentos que correm em paralelo, conforme dizia o antropólogo Claude Lévi-Strauss [1908-2009].

Meio século na UFRJ. Como tem sido seu percurso na instituição?  

Fui muito dedicada, acho. Sempre tive consciência da herança que recebi. Devo minha vida aos institutos de pesquisa que meu pai ajudou a criar. Tenho bolsa do CNPq desde estudante e ao longo de toda minha vida como professora da universidade, até hoje. Participei ativamente dos processos internos da instituição que são muito dolorosos porque a vida universitária é repleta de conflitos, como os terreiros. Ao mesmo tempo, a dor e o sofrimento da vida universitária são amenizados pela busca de unir as melhores cabeças para o desenvolvimento da ciência. Primeiro, com meus colegas, fundei e coordenei um programa pioneiro de iniciação científica, com muita dificuldade. Também atuava no grupo de pesquisa Núcleo da Cor, em que reuníamos intelectuais de todas as cores para estudar a temática do negro no Brasil. Naquela época, era um tema desprestigiado. As pessoas pesquisavam cultura negra e religião, mas quase ninguém trabalhava com pesquisa sobre relações raciais.

A senhora foi pioneira.

Ao lado de outros cientistas sociais, como Rosilene Alvim, Neide Esterci, Peter Fry, Marco Antonio Gonçalves, Mirian Goldenberg, Maria Laura Viveiros de Castro, Bila Sorj, Michel Misse, José Ricardo Ramalho, Glaucia Villas Bôas, Alice Rangel de Paiva Abreu, entre outros professores da UFRJ, considero que demos a nossa contribuição. Posso dizer que tive um papel nos estudos de relações raciais no Brasil. Desde os anos 1970, pesquiso e escrevo sobre o tema. Em 1988, com o apoio da Fundação Ford, desenvolvemos uma extensa pesquisa sobre o centenário da Abolição. Éramos várias mulheres antropólogas: Maria Laura Viveiros de Castro, da UFRJ, Caetana Damasceno, da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro [UFRRJ], Patrícia Birman, da Uerj, entre outras, trabalhando sob a coordenação de Heloisa Buarque de Holanda no Centro Interdisciplinar de Estudos Contemporâneos [Ceic] da UFRJ. Coletamos e organizamos o Arquivo Abolição, com produções daquele ano envolvendo o centenário da Abolição no Brasil. Produzimos um catálogo mostrando que as comemorações se voltaram à cultura negra e poucas trataram das relações raciais e desigualdades. No início dos anos 1990, coordenei um programa de intercâmbio com apoio da Fundação Rockefeller, que durou três anos, o Programa Raça e Etnicidade, trazendo pesquisadores do mundo todo para trabalhar no Brasil. A iniciativa também formou estudantes brasileiros e deu origem ao livro Raça como retórica: A construção da diferença [Civilização Brasileira, 2002]. Ao refletir sobre relações raciais, passei a olhar para os cursos pré-vestibulares criados para negros e pessoas carentes. O Brasil tinha modificado seu sistema educacional e ampliado o acesso ao ensino médio. Com isso, muita gente queria fazer universidade, sem conseguir vaga.

Comecei a me perguntar onde estava o racismo. Todos diziam que era preciso estabelecer cotas raciais na universidade, porque a escola era racista. Então, em 2004, criei outro núcleo, chamado NaEscola, e fomos pesquisar. O objetivo era entender o preconceito e o racismo na escola de ensino médio no Rio de Janeiro. Descobrimos que a discussão mais frequente, entre os jovens nas escolas, não era exatamente sobre isso. Até mais ou menos 2014, os debates principais giravam em torno de assuntos como repetência, prova e notas. A acusação mais dramática, para eles, era o fato de ser ou parecer homossexual. No entanto, os estudantes mais escuros se sentiam mais prejudicados pelos professores, embora não levassem em conta a cor ao escolher amigos e parceiros.

Como isso impactou seu projeto de pesquisa?

Fizemos uma correção de rota, fomos por outro caminho. Passamos a estudar o ethos dessas escolas. No decorrer da pesquisa, talvez pelo fato de eu estar mais velha, ser mãe e avó, passei a me interessar pelas mães dos alunos. Com isso, minha pesquisa atual envolve a história de vida de mães de estudantes que ascenderam socialmente.

Depois de tantos anos pesquisando relações raciais, qual sua posição quanto às cotas?

Meu argumento sobre as cotas nunca foi devidamente compreendido. Não acho que elas impedirão a qualidade da universidade. Minha história é marcada desde o começo pela luta à incorporação de jovens pobres ao ensino superior. O racismo é um drama que afeta o nosso país e é um fenômeno perverso e doloroso. Porém, penso que é impossível combater o racismo entronizando a ideia de raça, ou seja, colocando a raça no centro de uma política que visa combater o racismo. É uma incoerência, porque ao contrário de diminuir o racismo, essa política o acirra. Somos um país com leis que combatem o racismo, onde é preciso fazer um “manual antirracista” para ensinar as pessoas que existe o racismo. Em uma sociedade segregada, como os Estados Unidos, não seria necessário elaborar um manual. Isso não quer dizer que, aqui, as pessoas não sejam racistas, mas, sim, que o racismo foi reprimido por lei desde a República. De 2001 a 2012, participei de audiências públicas e escrevi duas cartas, junto com diversos outros intelectuais, que foram dirigidas ao Congresso Nacional e ao Supremo Tribunal Federal para expressar nosso posicionamento sobre os perigos da política de cotas raciais que dividiria o Brasil legalmente entre brancos e negros. Não fomos ouvidos. E vemos hoje, especialmente em ambientes universitários, o acirramento do racismo produzido por comissões de heteroidentificação racial. Diferentemente das cotas raciais, uma ação afirmativa endereçada para pobres incluiria automaticamente os negros e não seria necessário marcar ninguém com a raça. A ideia de raça, de que há pessoas superiores a outras por causa da raça, é odiosa. Os tribunais raciais organizados nas universidades para determinar que candidatos são negros e têm direito à reserva de vagas se valem de técnicas racistas do século 19, medindo a tonalidade da pele, o tamanho do nariz e o tipo de cabelo. Com isso, reforçam a ideia de raça biológica, além de produzir mais injustiças.

Maggie e a mãe de santo Dona Conceição em 1976, no Terreiro Ilê de Oxalá e Obaluaê, em Miguel Couto, no Rio de Janeiro. Crédito: Arquivo Yvonne Maggie
Por que decidiu dirigir o IFCS?

Decidi concorrer ao cargo de direção, que ocupei de 1994 a 1997, em um ambiente acadêmico muito politizado. Não sou filiada a nenhum partido, mas queria fortalecer o instituto. No período em que fui diretora, colaborei com a solidificação e o aprimoramento das avaliações de seus três programas de pós-graduação e promovi concursos que resultaram na contratação de professores importantes. Reformei as fachadas do prédio histórico, mesmo edifício onde meu pai se formou e começou a dar aulas. A primeira rede Wi-Fi foi implantada na minha gestão. Era o período do primeiro governo de Fernando Henrique Cardoso [1995-1998 e 1999-2003] e tive grande apoio do Ministério da Educação [MEC]. Nesse período também consegui realizar um feito que aprendi com meu pai: juntar pessoas em favor de um projeto comum. Depois de 1997 dirigi por quatro anos a editora da UFRJ. Nesse período, cogitei me candidatar ao cargo de vice-reitora, mas a chapa acabou não dando certo. Dirigir a UFRJ é um desafio. O ambiente é politizado e, muitas vezes, a reitoria fica presa nessa rede. Mais recentemente, meus colegas me indicaram para dois títulos prestigiosos. Em 2017, passei a integrar a Academia Brasileira de Ciências e me tornei professora emérita da UFRJ.

Em que medida a condição feminina marcou sua trajetória?

Sou da geração que queimou sutiãs e lutou para abolir regras de submissão. Fui a primeira da minha família a terminar um curso superior e, hoje, tenho posição de destaque no mundo acadêmico. Sobre o movimento feminista dos anos 1970, sempre tive um pé atrás. Penso que não devemos ser colocadas em caixinhas. Quando eu era jovem, não me submetia à estética de mulheres acadêmicas, em geral sérias e vestindo roupas formais. Eu era meio hippie, mas, também, vinha de uma família muito católica. Conversando com minha irmã mais velha, que hoje tem 84 anos, vejo que minha geração é completamente diferente da dela. Sou feminista no sentido de ter um projeto de libertação e de ter lutado pela liberdade de outras meninas. A maioria dos meus alunos é mulher.

Quais os desafios que a antropologia enfrenta hoje?

A antropologia está perdendo sua base de fundação. É uma ciência que surgiu com o projeto de se colocar no lugar do outro para entendê-lo e, hoje, parece que essa premissa de trabalho foi abandonada. A antropologia está novamente em crise por causa de um bordão que se criou, a ideia do lugar de fala, ou seja, de que cada um só pode se manifestar a partir de seu ponto de vista. Nessa perspectiva, não há o outro. A antropologia que valorizo representou justamente uma revolução no sentido de tentar entender o outro.

Como tem lidado com a pandemia? 

Sou casada com Luiz Alphonsus, que é artista plástico da geração conceitual. Com ele, tive meu único filho, Domingos Guimaraens, que também é artista visual. Tenho um neto de 3 anos. A pandemia me afastou do filho, do neto e da nora durante mais de cinco meses, período em que fiquei sem sair de casa. No final de agosto, resolvemos unir nossas pequenas bolhas e eles vieram passar alguns dias conosco. O mundo já enfrentou outras pandemias tão ou mais graves do que essa. Meu filho acaba de lançar um pequeno livro de cartas do bisavô dele, o poeta Alphonsus de Guimaraens [1870-1921], que viveu a gripe espanhola e descreve desafios parecidos com os atuais. A gripe era mortal, principalmente para trabalhadores das minas, que já tinham o pulmão afetado. Os pobres são sempre os mais afetados nessas catástrofes. Mas, apesar de já termos passado por isso, hoje precisamos de lideranças mais fortes, sensíveis e menos negacionistas. No Brasil, a pandemia nos afetou duplamente. É como se estivéssemos vivendo uma guerra e, nas guerras, o setor cultural é sempre um dos mais atingidos. Minha esperança é de que as pessoas façam um movimento de introspecção ao longo desses meses, talvez anos, até que uma vacina seja eficaz. Alguns eventos criativos têm ocorrido nesse período, como os seminários, as teses defendidas virtualmente e os encontros entre amigos pela internet. Mas, obviamente, são alívios pequenos para a tragédia que vivemos. A antropologia também foi duramente afetada, pois envolve trabalho de campo e conversas cara a cara com as pessoas.

 

Yvonne Maggie em perfil

Idade 76 anos

Especialidade Antropologia das populações afro-brasileiras, religião e educação

Instituição Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)

Formação Graduação em ciências sociais pela UFRJ, mestrado e doutorado em antropologia social pela UFRJ

Produção 72 artigos e capítulos de livros, 7 livros, orientação de 68 estudantes de iniciação científica, 32 dissertações de mestrado e 12 teses de doutorado